Marilena Chauí: “Não conseguimos desenvolver uma cultura de democracia”

Coletivo da USP discute a lei antiterrorismo. Foto: Manuela Azenha
Coletivo da USP discute a lei antiterrorismo. Foto: Manuela Azenha

Como chegamos à situação atual de crise? É o que se perguntaram o sociólogo Gabriel Cohn e a filósofa Marilena Chauí no segundo encontro do coletivo Em Defesa dos Direitos Conquistados, na Universidade de São Paulo, na segunda-feira (11), que tinha como tema a lei antiterrorismo e a criminalização de movimentos sociais. O debate também contou com a presença de Maria Laura Canineu, presidente da Human Rights Watch, e a moderação do cientista político Paulo Sérgio Pinheiro.

Para Cohn, não estamos apenas em uma conjuntura de crise, mas em um processo de longo prazo, profundidade e sem volta. “Me refiro à semana em que Lula foi sequestrado para depor e depois ameaçado de prisão preventiva. Isso mudou tudo e escapa à mera conjuntura de crise. É impossível não sentir afinidades com 1964. Não estou dizendo que haverá uma ditadura, ninguém precisa mais disso. Mas depois de tantos anos, encontramos o espírito remanescente de 64. Na época aconteceu um levante contra a corrupção e o comunismo. Agora é contra a corrupção e o petismo.”

O sociólogo diz que a lei antiterrorismo foi aprovada em um momento de paralisação do governo. “O governo estava sitiado pelos dois outros poderes e a única medida clara que tomou foi essa. Há muita pressão. É o Império que impõe isso. O Brasil agora entra para a linha de ataque dos Estados Unidos, eles não permitem que haja reserva de petróleo em um país que não seja de absoluta confiança.”  

Segundo Maria Laura, desde o ataque às torres gêmeas em 2001, leis antiterrorismo começaram a ser implementadas pelo mundo todo, “leis draconianas que tentam conceituar o que é terrorismo e pregam a vigilância em massa”. No caso do Brasil, o texto foi iniciativa do Ministério da Fazenda, sob recomendação do GAFI (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo). “As Olimpíadas foram um pretexto para reprimir direitos fundamentais”, diz a presidente da Human Rights Watch. “É muito triste pensar que essa lei saiu do Executivo, de um governo que em tese defende a liberdade de expressão e de manifestação. Um governo, inclusive, do qual eu fiz parte.”

Para Maria Laura, o mais problemático é a falta de precisão do texto, que não é capaz de definir o que é terrorismo e por isso não garante que movimentos sociais não sejam enquadrados. “O direito penal tem que ser específico e previsível. Nessa lei, os conceitos são muito vagos, não tem como prever como será aplicada e portanto não tem como ajustar a conduta para não ser criminalizado. O precedente de intimidação que isso abre é muito assustador.”

Marilena diz que a lei antiterrorismo e a ofensiva conservadora que atinge o País hoje são problemas que vêm desde o fim da ditadura civil-militar: “O processo de democratização ficou circunscrito à esfera política. As relações sociais em sua forma violenta continuaram. As estruturas básicas, autoritárias e violentas se mantiveram. Não conseguimos desenvolver uma cultura de democracia. Não demos passos para isso”.

Cohn diz que os avanços sociais e econômicos não fortaleceram o valor da cidadania: “Isso é resultado de um lado bom, mas incompleto, de políticas sociais, que não chegaram onde se propunha. O Bolsa Família, por exemplo, não era para ser um programa de inclusão de consumidores, mas de cidadãos. Isso não vem sem consequência”.

Para Marilena, além de não ter sido criada uma “cultura de cidadania e democracia”, tampouco houve capacidade do governo em compreender a nova composição de classe. “O que surgiu não foi uma nova classe média, mas uma nova classe trabalhadora. Nova porque ela não tem o passado de luta nos sindicatos nem contra a ditadura. Nova porque ela entra no mercado de trabalho sob a égide do neoliberalismo. O único sentido para essa classe são as igrejas evangélicas, com valores de prosperidade e empreendedorismo. Se não tivermos compreensão disso, estamos produzindo um reacionarismo na base da sociedade brasileira.”

O próximo encontro do coletivo será no dia 16 de maio, na USP, e o tema do debate será o estatuto do desarmamento e segurança pública.


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