Nosso submarino nuclear

Centro Experimental de Aramar, em Iperó, interior de São Paulo. É lá que a Marinha desenvolve desde 1979 seu Programa Nuclear, destinado a construir um reator compacto que vai equipar o futuro submarino nuclear brasileiro. E, para deixar bem claro que no lugar se lida com material radiativo, o conhecido retângulo amarelo com três triângulos pretos indicando radiatividade está em todas as paredes. Eu e o repórter fotográfico Hélcio Nagamine nos lembramos disso, com uma certa preocupação, ao receber jalecos brancos e coberturas de plástico branco para os pés para termos acesso a uma área de segurança máxima.

Vestidos a caráter, entramos em uma sala refrigerada onde uma espécie de biombo de painéis metálicos escondia algo para que não fosse visto por olhos estranhos. Um ruído leve indica que, por trás dos painéis metálicos, há muitos equipamentos altamente sofisticados funcionando sem parar. Estamos diante de um dos maiores segredos do Programa Nuclear da Marinha e do Brasil. A pergunta é feita, já antevendo a resposta: “Essas são as tais cascatas de centrífugas que o pessoal da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU, queria inspecionar e o Brasil só deixou se fosse tudo coberto?” A resposta vem rápida, dita quase em conjunto por três vozes: “Exatamente. Esse sistema de cascata de ultracentrífugas é invenção brasileira, bolado pelo Othon e sua equipe, diante da negativa dos europeus, por pressão dos Estados Unidos, de nos repassar a tecnologia de enriquecimento de urânio por difusão gasosa, usada na Europa”. Essas cascatas são usadas no enriquecimento do hexafluoreto de urânio, processo que separa o isótopo U-235 do U-238 – o primeiro é a matéria-prima do combustível que move usinas nucleares, sejam elas em terra ou em submarinos e navios. O domínio do ciclo completo de beneficiamento do urânio, da mina até a usina nuclear, é privilégio de apenas cinco países, Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra e França. Outros países, que também têm tecnologia nuclear, como Índia e Coréia, adquiriram desses cinco, de forma legal ou ilegal. Não por coincidência, o quinteto que ocupa os cinco lugares permanentes do Conselho de Segurança da ONU. É para esse clube mais do que fechado que o Brasil já pediu sua carteira de sócio, graças a essa invenção.
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A sintonia entre o capitão de fragata André Ferreira Marques, coordenador de Enriquecimento de Urânio, a engenheira eletrônica Vera Lúcia Fiedler Ribeiro e o engenheiro químico José Cláudio Pedroso é tanta que não deixa saber quem começou e quem terminou a resposta. Os três trabalham em Aramar desde os anos 1980, para onde foram recrutados pelo almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva (o Othon a que todos se referem quase que com veneração), o pai do Programa Nuclear da Marinha, e Aramar é seu cotidiano desde então.

Vera Lúcia tinha um ano de formada quando foi morar em Iperó, cidadezinha perto de Sorocaba onde está instalado o complexo de Aramar. Ela fala com orgulho da invenção brasileira. “O segredo está na utilização de ultracentrífugas de pequeno porte que, conjugadas, realizam com mais eficiência e a um custo muito menor o que os equipamentos norte-americanos fazem.” Pedroso explica que o uso da tecnologia de levitação, que mantém os equipamentos como se estivessem “flutuando” no espaço, associado à refrigeração a ar, em vez de água, como ocorre no modelo americano, tornaram Aramar um local que desperta curiosidade e cobiça tanto por parte dos países que dominam o ciclo atômico completo quanto dos que gostariam de dominá-lo. O comandante Ferreira Marques, engenheiro naval da Marinha que foi cooptado para o projeto nuclear assim que terminou a graduação na Universidade de São Paulo (USP), lembra que, durante muito tempo, especialistas estrangeiros e inspetores da AIEA não acreditavam que o equipamento de enriquecimento de urânio realmente funcionava. “Eles entravam e saíam desconfiados, certos de que estávamos contrabandeando hexafluoreto de urânio de algum lugar. O que mais chamava a atenção deles era a falta do barulho comum às das outras centrífugas lá de fora”, conta.

Depois de terem certeza de que o Brasil não estava usando gás contrabandeado, o foco das visitas dos inspetores da AIEA mudou. Eles tentavam descobrir como o País e a Marinha tinham desenvolvido seu processo original. Pedroso conta que, quando os inspetores da AIEA vêm fazer as inspeções, eles têm um tempo determinado e são acompanhados pelo pessoal do centro. “Se algum inspetor ficar olhando muito para cima, para aqueles canos, por exemplo, como você está fazendo, o mandamos não olhar mais e seguir em frente. Quem é do ramo deduz as coisas pelos mínimos detalhes”, diz. O comandante Marques reforça a necessidade do segredo, pois são poucos os países que têm o domínio completo do ciclo nuclear. “Isso aqui é o que o Irã, por exemplo, gostaria de ter”, brinca. O resultado é que Aramar e as instalações das Indústrias Nucleares Brasileiras, em Rezende (RJ), serão capazes de suprir todas as necessidades de combustível nuclear do Brasil nas próximas décadas.

Saímos da sala rumo a outra área de Aramar, passando antes por mais detectores de radiatividade. Imediatamente vêm à mente cenas de acidentes nucleares, como Three Mile Island, nos EUA, ou Chernobyl, na ex-União Soviética, hoje Ucrânia. Imagino repórter e fotógrafo de Brasileiros passando por sessões de banhos com mangueira de alta pressão, escovações, etc. O comandante Marques brinca e diz que lá ninguém usa cueca de chumbo. E Vera Lúcia recorda que, quando sua primeira filha, Daniela, hoje com 20 anos, nasceu, o pediatra de Iperó não queria examiná-la, com medo de se contaminar. “Vocês foram submetidos a menos radiação do que em um raio X de dentista”, garante Pedroso.

A rotina de sermos testados e aprovados se repete no setor em que o urânio gasoso é transformado em pó e depois compactado, formando pastilhas que, por sua vez, vão ser aglutinadas em varetas de combustíveis dos reatores. Quem comanda o setor é a física Selma Luiza Silva, doutora em combustível nuclear e caracterização de materiais. Ela tinha 17 anos quando começou a trabalhar no programa, como estudante na USP e estagiária do Instituto de Pesquisas em Energia Nuclear (Ipen). Hoje, aos 46 anos, é a responsável pela qualidade do urânio combustível que Aramar fornecerá para o reator do futuro submarino nuclear brasileiro.

Selma explica que as medidas de segurança adotadas tanto em Aramar quanto na fábrica das Indústrias Nucleares Brasileiras, onde o urânio é produzido em escala industrial, permitem que hoje a indústria nuclear brasileira – civil ou militar – seja considerada não danosa ao meio ambiente. “Toda a água que usamos aqui é captada à jusante do ponto em que é devolvida ao rio, depois de usada e tratada, saindo muito mais pura do que entrou. Quer dizer, confiamos no que fazemos, pois pegamos água abaixo do ponto em que a liberamos no rio. É a história do lobo e do cordeiro invertida”, comenta o comandante Ferreira Marques.

A próxima escala da equipe é conhecer o trabalho pesado da construção do reator nuclear de Aramar. Pesado não é modo de falar. Quando se vê uma peça sendo montada com paredes de aço especial com dois dedos de largura, ou que um torno mecânico mede metros de altura – o que fascinou o presidente Lula em recente visita ao Aramar -, se percebe que algo muito grande está em gestação. “Aqui, se trabalha com peças que pesam toneladas, mas com a precisão de um relógio suíço”, explica o capitão-tenente engenheiro naval Luiz Cláudio Farina, 37 anos, 13 de Marinha, um dos novatos do Programa Nuclear. Formado em engenharia mecânica no interior de São Paulo, ele passou seus primeiros anos de Marinha trabalhando no Rio de Janeiro. E foi como voluntário para Aramar.

Luiz Cláudio mostra um cilindro de aço com mais de um metro de diâmetro e explica que será o vaso de contenção do gerador de vapor. O aço é preparado para resistir à radiação, não contaminando o ambiente. “Todas essas peças têm a precisão de mícron. É como se estivéssemos fazendo um Rolex de um gigante”, comenta. Só no desenvolvimento desse aço que resiste à radiação, o ganho tecnológico para o Brasil foi enorme. O comandante Ferreira Marques destaca que, em Aramar e no Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), localizado na USP, em São Paulo, e ao qual o Aramar está subordinado, tudo teve de ser feito a partir do zero – o enriquecimento de urânio, a construção do reator e do submarino. “Ninguém passa adiante tecnologia nuclear. Especialmente depois que, lá fora, perceberam que estávamos mesmo projetando um submarino nuclear. Certa vez, precisamos reparar uma peça de uma turbina na Inglaterra. Quando perceberam que se destinava a um submarino nuclear, não nos devolveram a peça. Pagaram uma multa pesada. E, com o dinheiro, desenvolvemos a peça aqui mesmo. Hoje, todos sabem, lá fora, que nosso submarino nuclear é questão de tempo, pois tecnologia nós já temos”, destaca.

E aí se chega à outra onipresença em Aramar: o submarino nuclear brasileiro. A arma mais letal dos mares, a que, segundo todos os especialistas em guerra naval, permite a uma Marinha menor fazer frente e intimidar forças muito mais poderosas. O submarino nuclear brasileiro, que teve o novo sinal verde para sua construção dado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pode ser visto em várias maquetes, de diferentes escalas, feitas pelo maquetista João Tavares Fusco, 59 anos, há 20 no projeto. Pelas maquetes de Fusco, já se sabe que o futuro submarino nuclear – um hunter-killer da mais pura estirpe – terá 90 metros de comprimento por dez de diâmetro. Tamanho comparável aos submarinos nucleares ingleses da classe Trafalgar, e maior que os franceses da classe Amethyste. O projeto será todo desenvolvido no Brasil, usando a tecnologia adquirida com a construção de quatro submarinos convencionais no Arsenal de Marinha, no Rio.

O prédio definitivo do reator terá sua construção reiniciada depois de dez anos parada. O comandante Ferreira Marques explica que o reator de Aramar, que deverá entrar em operação em 2014, foi projetado para caber dentro do submarino, que começará a entrar na fase de desenvolvimento de projeto ano que vem e, segundo o almirante Júlio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha, deverá ser lançado ao mar em 2018. Se tornará o segundo clube altamente fechado a que o Brasil vai se incorporar, mesmo contra a vontade dos atuais sócios, os mesmos cinco do Conselho
de Segurança.

Os reatores de Aramar e do submarino (ou submarinos no plural, dependendo somente de dinheiro e decisão política) terão capacidade de gerar 11 megawatts de energia, suficiente, por exemplo, para abastecer uma cidade de 20 mil habitantes. Ou levar o submarino a navegar embaixo d’água por seis meses a uma velocidade de até 30 nós. Essa informação me fez recordar da minha primeira experiência a bordo de um submarino. Em 1998, junto com o fotógrafo André Dusek (que teve de adaptar seus 1,94 metro de altura a beliches de 1,80 metro), passei seis dias submerso no submarino Tamoio, com seis metros de diâmetro e 60 de comprimento, o primeiro de uma série de quatro construídos no Arsenal de Marinha, no Rio de Janeiro. Acompanhamos os combates navais simulados contra uma flotilha de navios de guerra do Brasil. Com uma propulsão diesel-elétrica, o Tamoio é considerado quase indetectável. Periodicamente tem de erguer o snorkel para fazer os motores a diesel funcionarem e recarregar suas baterias elétricas. Na hora das batalhas finais, no entanto, o Tamoio se mostrou mortífero, ganhando todas as simulações, abatendo duas fragatas e um navio-tanque.

“Estamos diante de uma espécie de super-Tamoio?”, perguntei. “Boa imagem, mas é bem mais do que isso. É como comparar um golfinho com um tubarão. O Tamoio precisa respirar de tempos em tempos. O nuclear pode ficar o tempo todo submerso, pronto para o ataque. É uma arma que pode decidir uma guerra, ou impedi-la por sua presença”, disse Ferreira Marques.

Cuidar do combustível do submarino é a principal tarefa da capitã-de-fragata Ana Maria Vaz de Araújo, uma paulistana de 47 anos que tem sua vida dedicada ao projeto nuclear da Marinha. Formada em engenharia eletrônica pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), de São Bernardo do Campo (SP), ela entrou para a Marinha em 1983, como engenheira naval. Responsável pelo desenvolvimento dos sistemas de combustão do reator do submarino, explica que suas características são diferentes de um reator de uma usina nuclear, como Angra-1, 2 e 3. Na usina, o reator funciona o tempo todo em potência máxima. No submarino, é preciso acelerar e desacelerar, o que requer tecnologia especial. A comandante Ana Maria também está empenhada no projeto de nacionalização da fibra de carbono, um monopólio americano, que está sendo feito no CTMSP. “A Embraer já está interessada nesse subproduto do nosso programa nuclear”, comenta.

O CTMSP e Aramar também são a vida de André Luiz Ferreira Marques. Com 44 anos, filho de militar, ele entrou para o Colégio Naval com 15 anos. Depois de formado oficial em 1984, escolheu como especialização a engenharia naval. E ainda na USP, foi selecionado por Othon para o projeto nuclear. Mestre pelo prestigioso Massachusetts Institute of Technology (MIT), como o próprio Othon, seu guru, a quem homenageou dando o nome de Othon Luiz a seu terceiro filho, de apenas dois anos, o comandante Ferreira Marques recorda dos anos de corte de verbas e descaso do governo e da própria Marinha com o programa nuclear. Depois de 1994, quando Othon saiu, as verbas foram drasticamente reduzidas. Por muito pouco, o Brasil quase jogou fora todo o conhecimento adquirido durante anos. Sem recursos, muitos oficiais da Marinha e cientistas civis tiveram de deixar o programa em busca de melhores salários. Mas acha que agora chegou o momento da virada e que o dia 10 de julho, o da visita do presidente Lula a Aramar, marca mesmo o renascimento do programa. “O Othon estava junto com o presidente. Ele não vinha aqui há muitos anos e sua presença na comitiva simbolizou para nós uma nova era. Ficamos emocionados ao ver que nosso sonho estava de volta. E acredito que de forma definitiva”, comenta, com entusiasmo.

O ciclos de um projeto
Iniciado em 1979 como prioridade, o programa da Marinha de desenvolvimento de sistemas de enriquecimento de urânio, construção de um reator e, finalmente, de um submarino nuclear, teve várias fases. O clima variou da euforia e do entusiasmo iniciais até a depressão provocada pela falta de recursos e por todo o tipo de pressões contrárias, a maior parte vinda de dentro da própria Marinha. O projeto andou bem até o governo Itamar Franco, e a nomeação do almirante Ivan Serpa para ministro da Marinha – uma de suas primeiras decisões foi reduzir os recursos do programa à sua vigésima parte.
No começo do governo Fernando Henrique, embora já sem o comando de seu idealizador e impulsionador, almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, transferido para a reserva, o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo e o Centro Experimental de Aramar tiveram um leve alento, com pequeno aumento nas verbas. A partir do segundo mandato de FHC, porém, foi sendo deixado de lado. O submarino nuclear não era mais prioridade, mesmo o País tendo uma área de domínio de mar equivalente à da Amazônia.
No primeiro governo Lula, embora o presidente e muito dos seus formuladores de política externa e de defesa fossem favoráveis, a falta de recursos deixou o projeto em banho-maria, o que permitia apenas manter o que tinha sido descoberto e desenvolvido. A corrente contrária ao submarino nuclear dentro da Marinha se reforçou e, no final do ano passado, o então chefe do Estado Maior da Armada, almirante de esquadra Euclides Duncan Janot de Matos, anunciava que o Brasil iria comprar um novo submarino alemão, não nuclear, e construir mais dois no Arsenal de Marinha. E que estava na hora de desativar de vez o sonho nuclear naval.
Janot só não contava que Lula decidisse esperar 2007 para mudar o Ministério. Caído na chamada “expulsória” por tempo de serviço e transferido para a reserva, ele foi substituído no Estado Maior da Armada pelo almirante de esquadra Júlio Soares de Moura Neto, de uma tradicional família de oficiais de Marinha. Moura Neto em fevereiro foi nomeado por Lula comandante da Marinha. Defensor do projeto nuclear, ele tratou de buscar recursos para o reaparelhamento da Marinha. E, em jogada de mestre, levou Lula, que já havia se mostrado partidário do programa nuclear, a Aramar.
Entusiasmado com o que viu, o presidente anunciou a liberação de R$ 1,1 bilhão, a princípio em parcelas anuais de R$ 130 milhões, fora do orçamento da Marinha. Era a ressurreição do projeto do reator e do submarino nucleares. Entre os membros da comitiva estava o almirante Othon, hoje presidente da Eletronuclear, o homem que vai construir Angra-3 e outras novas usinas nucleares – seguras e obedecendo a todas as exigências ambientais. Emocionado, Othon viu seu “filho”, que estava quase abandonado, ser colocado de novo como prioridade para o País. Mas quem melhor definiu o estado de espírito dos 1.500 oficiais de Marinha, cientistas e técnicos do projeto foi o almirante Carlos Passos Bezerril, atual diretor do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, a quem Aramar está subordinado. “Muitos na Marinha me perguntaram por que eu ria tanto, junto do presidente. Ora, ele tinha acabado de me dizer que o dinheiro ia sair mesmo, que o projeto estava de volta com força total. Queriam que eu chorasse? Tinha é que rir muito”, recorda, dando uma gargalhada.


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