O novo Mapa da Violência, estudo sobre mortes provocadas por armas de fogo publicado hoje pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), alerta que, apesar da queda no número de homicídios nos últimos 10 anos, a contínua distribuição de armas de fogo e o aumento dos arsenais está retomando o crescimento dos assassinatos por armas de fogo de forma descontrolada.
Entre 1980 e 2014, morreram 830.420 pessoas por disparos de armas de fogo. São as mortes anunciadas. As vítimas continuam sendo jovens, negros, pobres e de periferias urbanas, com pouco acesso à educação, ao mercado de trabalho e de cultura. E pior: as vidas perdidas são cada vez mais jovens e mais negras. É um quadro que demonstra descaso – e racismo – em relação a essa parcela da população brasileira. “Sabemos exatamente quantos vão morrer por armas de fogo o ano que vem, daqui a dois, três, quatro anos, porque as pálidas medidas de enfrentamento da violência são contestadas neste momento pelo lobby da bala, das armas de fogo”, afirma o sociólogo Julio Jacobo Waiselfiz, responsável pelo Mapa da Violência 2016.
O quadro mostra que o crescimento do número de homicídios por armas de fogo entre 1980 e 2003 foi sistemático e constante, alcançando um pico de 36,1 mil mortes. Com o Estatuto e a Campanha do Desarmamento, em 2004, houve uma primeira queda e os dados se mantiveram até 2012, quando voltam a subir. Esse cenário demonstra que para enfrentar a violência é necessário um conjunto de políticas públicas, não apenas destinadas à violência em si, mas principalmente voltadas para incluir a juventude mais vulnerável no mapa de garantia de direitos do Estado.
“A violência não se erradica apenas com o desarmamento. O que se tira é a letalidade da violência”, explica Jacobo. “A continua distribuição de armas, o lobby das empresas fabricantes representadas por diversos personagens dentro do Legislativo e do Judiciário, está levando o País a uma carnificina de brasileiros a nível nacional.” De acordo o sociólogo, somos o país que mais mata por arma de fogo no mundo, mais que os Estados Unidos ou outros países que têm maior numero de armas.
Brasileiros “matáveis”
Medidas pontuais como o Estatuto do Desarmamento são importantes mas limitadas. Precisam de outras políticas complementares para que sustentem o enfrentamento à violência. “O Brasil tem uma cultura de violência reforçada pela circulação ampla de armas de fogo. Morrem cada vez mais jovens, cada vez mais negros, com média educacional de três a quatro vezes menor do que o resto da juventude nacional. É um perfil muito delimitado”, afirma Jacobo. São os “matáveis”. “Há uma cultura de que esses jovens são ‘matáveis’.”
Para estancar a matança, seria necessárias políticas de juventude e políticas para a juventude. “As políticas que existem para segurança são totalmente insuficientes, quando não são ineficientes”, denuncia o sociólogo. Ao comparar dados da virada do século com os atuais, percebe-se que a violência diminuiu justamente nos estados onde naquele momento era elevada, como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. O que aconteceu é que foi criado o Fundo Nacional de Segurança Pública, que levou recursos para esses locais. Fizeram ações específicas que agora não dão conta da complexidade do problema. O resultado é que os índices voltaram a aumentar.
Por outro lado, nos estados onde há 10 anos não havia alto grau de violência por arma de fogo, não houve nem medidas contra esses homicídios. A conseqüência é que as organizações criminosas migraram para Alagoas, Maranhão, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pará, estados que se converteram hoje em grandes pólos de violência nacional.
Alagoas, Ceará e Sergipe são os estados mais letais no Brasil hoje, conforme mostra o quadro abaixo.
A tendência de aumento no número de mortes causadas por armas de fogo também se nota nas capitais. As taxas cresceram de forma assustadora em capitais relativamente tranqüilas na virada do século, como é o caso de Natal, São Luís e Fortaleza.
Estrutura da mortalidade por arma de fogo
Apesar da implementação de algumas políticas nos últimos 13 anos, ainda somos um País que parece não ter nem constrangimento que gerações de jovens negros sejam exterminadas. Como se essas vidas não tivessem valor, ou até, como se interessasse à elite, que precisa manter seus privilégios, que essas pessoas desaparecessem. É uma vergonha.
A média de idade dos brasileiros que morrem assassinados a bala é 20 anos. Entre 1980 e 2014, houve um aumento nas taxas para esse grupo populacional (15 a 29 anos) de 699,5%. Não é pouca gente. São cerca de 26% da população total do Brasil, segundo o IBGE. A única medida que estagnou esses dados temporariamente foi o Estatuto do Desarmamento, que corre o risco de ser revisto e derrubado no Congresso brasileiro. A escalada da violência letal começa aos 13 anos.
Daqueles que morrem no Brasil por arma de fogo, 70% são negros (pretos e pardos). Enquanto a média desse tipo de homicídio no País é 10,7 por 100 mil habitantes para brancos, sobe para 27,4 para negros e chega a 71,7 por 100 mil habitantes negros em Alagoas. Ou seja, a violência letal considera a cor, em primeiro lugar, e é uma questão de faixa etária, em segundo lugar. Quem morre são jovens negros.
Que lugar é esse que assiste a essa história macabra e passa 20 anos sem enfrentar seria e definitivamente essa situação? Não por acaso, o Brasil é o País do mundo que mais trouxe escravos da África e onde a escravidão durou mais tempo no planeta inteiro.
Para entender a influência do controle de armas de fogo sobre essas mortes, leia também: Controle de armas e manutenção da vida
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