Para o diretor da Direito GV, Oscar Vilhena Vieira, a política de encarceramento em massa é uma das principais causas para a situação dos presídios hoje. Ele também afirma que a guerra às drogas ocasionou o caos no sistema e chama a atenção para a quantidade enorme de presos provisórios
Brasileiros – De quem é a responsabilidade pelos massacres nos presídios?
Oscar Vilhena Vieira – Evidente que tem uma responsabilidade que é muito clara no campo do Direito, a responsabilidade daquele que mantém alguém sob custódia: o estado do Amazonas, no caso do presídio em Manaus. Independentemente se o presídio é privatizado ou não, a responsabilidade objetiva é do estado. Ou seja, do ponto de vista civil, quem vai ter que responder aos familiares, quem vai ter que indenizar, sem dúvida nenhuma é o estado do Amazonas. Se há uma cogestão e ele vai entrar com uma ação regressiva, ou seja, ele vai cobrar da empresa pela sua parte nessa responsabilidade, isso é uma outra coisa. Então não há nenhuma dúvida a respeito de quem é responsável.
Bom, há um outro plano da responsabilidade que é a penal, é isso que tem que ser apurado. As informações que se tem até o momento é de que existiam inúmeros relatórios, indícios de que a situação no presídio era uma muito instável e que o estado não garantia a segurança dentro do presídio. Evidentemente que essas autoridades que deixaram de tomar alguma atitude em face das informações que tinham poderão inclusive ser responsabilizadas criminalmente.
Há uma responsabilidade, enquanto agente público, a responsabilidade civil. Ela recai sobre o estado do Amazonas, sobre as autoridades que tinham controle direto, e aí é importante que se diga: não é só a Secretaria de Assuntos Penitenciários mas também o Judiciário, o Ministério Público. Uma das coisas que no Brasil sempre fica obscurecida é que o monitoramento do sistema prisional, sua fiscalização, se dá pelo Poder Judiciário. Por determinação da Lei de Execução Penal, o Poder Judiciário tem que acompanhar, visitar, verificar se há algum problema. Então eu diria que há uma responsabilidade partilhada entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo.
No plano da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a União pode ser processada, como ocorreu, por exemplo, nos casos do Urso Branco (RO) e do Carandiru (SP). Qual a importância, em relação às políticas de segurança pública, de considerar e discutir a presença e o poder das facções dentro e fora dos presídios?
Essa é uma discussão que não é só brasileira. Estados Unidos e México, por exemplo, fazem essa discussão. É um problema internacional. Os países que têm facções dentro do sistema penitenciário têm que lidar com esse problema. O Brasil assumiu uma política – a partir do surgimento do PCC – que foi a política da dispersão. Você pegava os líderes dessas facções e dispersava ao redor do Brasil.
O efeito disso foi muito negativo. Estamos colhendo agora o resultado dessa política: o fato desses líderes terem sido enviados para diversos presídios ao redor do Brasil, fez com que o PCC se instalasse em muitos outros estados longe da sua origem e hoje nós temos indicações de que está presente em grande parte dos estados brasileiros. O sistema prisional tem uma predominância muito grande dessa facção. Então isso se demonstrou uma política equivocada. Há uma outra alternativa que é essa de você juntar os presos que são da mesma facção.
Do ponto de vista da proteção da integridade física dos presos, evidentemente que você deve buscar não colocar um grupo minoritário no convívio com um grupo majoritário, ainda mais quando há uma disputa, grupos de crime organizado que estão disputando o mercado de drogas . Colocar um grupo minoritário, como aconteceu no Amazonas, junto com um grupo majoritário, vai desencadear em um confronto e um dos grupos vai ser eliminado.
É uma política bastante equivocada, não só deu resultados muito negativos do ponto de vista da contaminação do sistema brasileiro inteiro como também tem se demonstrado desastrosa do ponto de vista da violência interna dentro dos presídios.
Além de distribuir os membros do PCC pelos presídios brasileiros, o que mais contribuiu para que o sistema penitenciário chegasse ao grau de caos e crise atual?
O Brasil assumiu há muitos anos uma política criminal bastante equivocada: o encarceramento em massa. O Brasil hoje tem cerca de 620 mil a 650 mil presos, depende da fonte que você consulte. Foi um crescimento enorme na última década. O principal responsável por esse crescimento foi a política equivocada sobre drogas. Então o Brasil encarcera muito e encarcera mal.
Porque uma boa parte dessas pessoas que estão sendo encarceradas pela Lei de Entorpecentes, não constituem o núcleo do tráfico, são simplesmente pessoas que vivem nas periferias sociais brasileiras e que sobrevivem ali, nas franjas do tráfico. Quanto mais nós encarceramos, quanto mais nós inchamos o sistema prisional, especialmente com pessoas de baixa periculosidade, mais essas pessoas vão sendo submetidas a um sistema altamente perverso, violento, dominado pelas facções criminosas. O que vai acontecer é que no momento que elas saírem do presídio, vão sair com um potencial criminal muito maior do que entraram.
Eu diria que nós fizemos a pior opção em termos de investimento público. Investimos contra o futuro , investimos para piorar a situação. Gasta-se muito, encarcera-se muito e aqueles que saem do cárcere saem com potencial ofensivo muito maior do que entraram. O índice de reincidência no Brasil é altíssimo.
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e o presidente da República, Michel Temer, anunciaram a construção de novos presídios como uma forma de solucionar a questão. O que o senhor acha sobre essa política?
A construção de prédios, por mais eficiente que fosse, não daria conta de atender essa política de encarceramento e também não seria eficiente porque não resolveria o problema de que essas pessoas sairão mais violentas do que entraram no sistema. Os Estados Unidos, país que adotou e impôs esse modelo de política de combate às drogas, hoje está revendo essa política.
Um relatório do Ministério da Justiça americano demonstra o quanto foi equivocada essa política. Há uma decisão importante da Suprema Corte norte americana sobre o estado da Califórnia determinando o desencarceramento. Quem reproduz esse discurso de que o que precisa é a construção de mais presídios, certamente não tem as informações sobre qual tem sido o efeito dessa política.
Qual seria a solução?
O Brasil tem que fazer urgentemente três coisas: uma política para reduzir a entrada dentro do sistema prisional, – e isso não significa impunidade, significa punir de outra forma, dispensar aquelas pessoas de baixo potencial ofensivo um, dar outro tipo de tratamento, penas alternativas, e diz respeito a drogas inclusive, descriminalizar algumas das condutas. Esse é um problema central.
O segundo problema central está diretamente relacionado ao Poder Judiciário. Cerca de 44% das pessoas que se encontram presas no Brasil hoje ainda não foram condenadas, estão presas aguardando julgamento. Isso demonstra a tolerância da justiça em manter preso alguém que ela não julgou ainda. Isso também incha o sistema de uma maneira absurda. Entre as democracias, não há nenhuma que tenha um padrão de preso provisório como o Brasil tem. Quase 50% de sua população está lá antes de ser condenada. Nós precisamos rever essa política .
E a terceira coisa que talvez seja a mais difícil , e o que tem gerado maiores debates, é o enfrentamento das facções criminosas.
Um antigo secretário de Assuntos Penitenciários disse, há muitos anos, uma frase que eu achei perfeita: o sistema penitenciário brasileiro é uma sociedade de economia mista onde o Estado é sócio minoritário. A existência, por exemplo, de uma cela com placa da organização criminosa, como em Manaus, indicando que eles administravam de fato o sistema criminal é uma demonstração de que o Estado transferiu para o crime a gestão do espaço prisional. Há estados na federação onde a triagem é feita pela facção criminosa.
Tudo isso demonstra que o Estado brasileiro está se esgarçando e que nessa área de sistema prisional há uma promiscuidade enorme entre o crime e o Estado. Se o Brasil não tomar atitudes consistentes muito rapidamente, nós caminhamos para uma situação muito parecida com a do México, onde realmente as facções criminosas administram parcelas do país onde a polícia é absolutamente impotente para lidar com essas facções criminosas – evidentemente a democracia passa sofrer uma ameaça, um sequestro pelo crime organizado.
Há indicação de que muitas facções já estão trabalhando com financiamento de políticos, de pessoas que estão no Parlamento, que estão nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas, nas prefeituras. Tudo isso é muito perigoso.
Pode-se dizer que o caos nos presídios hoje é um reflexo da política adotada depois do Massacre do Carandiru?
O massacre do Carandiru é realmente um divisor de águas, não que o sistema presidiário brasileiro fosse bom antes disso, ele era péssimo e por isso que o massacre do Carandiru aconteceu. Mas há um forte indício de que o massacre do Carandiru , ou seja, o Estado agindo de maneira tão brutal, sem respeitar as leis, gerou uma reação por parte da população carcerária.
Já existiam grupos (facções) desde os anos 1970. O massacre do Carandiru galvanizou algumas dessas energias dentro do cárcere pra criar um movimento de contraposição ao arbítrio do Estado.
Não estou falando isso com nenhum romantismo, achando que esse era um movimento altruísta de direitos humanos, de resistência, composto por criminosos e que passou para sua própria manutenção, sua própria subsistência, a explorar uma atividade criminal, que é o tráfico. Para manter a facção, você passa a coordenar atividades de narcotráfico fora das cadeias e o PCC foi ampliando essa estrutura buscando sempre ser monopolista nas regiões onde está estabelecido. Há uma relação direta entre esse fomento do crime organizado dentro e fora das cadeias.
Nesse período de quase 25 anos desde o Massacre do Carandiru, houve uma política de endurecimento, por exemplo, dos RDDs (Regime Disciplinar Diferenciado), que era uma tentativa de neutralizar as lideranças que foi fomentada a partir do final dos anos 1990. E tem a outra política, que é a da dispersão, que foi muito ruim para todo o sistema.
Mas ao meu ver a pior das políticas é a negociação e o arrego. Ou seja, você entra em conluio com esses grupos e transfere para eles a coordenação do sistema com uma perspectiva de estabilização: vocês coordenam mas não criam problemas.
Em algumas regiões do Brasil isso fica mais claro. Sem dúvida nenhuma significa que o crime organizado é que está tocando o sistema penitenciário e evidentemente exige uma contrapartida de que não seja muito molestado fora do sistema prisional. Esse conluio também explica a situação em que chegamos em muitas regiões do Brasil.
Para conter a situação, seria possível uma intervenção federal de emergência?
Essa é uma medida que está presente na Constituição e que no Brasil já foi proposta algumas vezes. O caso do Espírito Santo talvez seja o mais dramático, quando havia as chamadas “prisões de lata” e um presídio totalmente fora do controle das autoridades.
A intervenção, na configuração que a Constituição estabeleceu, gera um problema porque breca a possibilidade de aprovação de emendas durante o período onde há intervenção federal.
É difícil, não é algo simples, já foi tentado. Isso é um equívoco da Constituição porque essa intervenção federal é muito específica, ela não vai tirar o governador do Amazonas, ela será uma intervenção limitada à questão do sistema penitenciário.
A outra questão é que o Governo Federal precisa saber o que vai fazer, tendo a capacidade de intervir e tomar uma medida na qual ele vá restabelecer a ordem precisa saber se tem a condição de fazer isso. Parece-me que o Brasil precisa ser mais ousado.
Qual poderia ser o papel do STF nesse processo?
Sem dúvida nenhuma, essa questão vai passar por algum tipo de interpretação do Supremo Tribunal Federal, onde intervenções específicas retirem do controle do estado o sistema penitenciário e isso significa tirar também, eventualmente, do sistema judiciário estadual, do Ministério Público Estadual. E aí a Justiça Federal vai coordenar junto com as autoridades federais a reestruturação do sistema.
O papel importante nesse caso é do Conselho Nacional de Justiça. Ele tem um papel correcional, ou seja, o papel de fiscalização e eventual sanção dos juízes que não estejam agindo corretamente.
A ministra Carmen Lúcia está corretíssima: colocou como ponto número 1 de seu mandato no CNJ supervisionar os juízes brasileiros que estão monitorando o sistema penitenciário. O que o CNJ vai poder fazer é impor, em alguma medida, uma política aos juízes corregedores para que eles fiscalizem melhor o sistema.
O que significa quando o Estado reconhece os massacres como “acidente”?
Não é um acidente. Isso ocorreu porque você perdeu o controle sobre o sistema há muito tempo. Há inúmeros relatórios, inúmeras constatações – e isso não é relatório de ONG, mas da ONU, do CNJ -, demonstrando que o sistema está entrando em colapso e está completamente vulnerável às facções criminosas.
Então o que aconteceu é decorrência de uma política desastrosa, que não é culpa desse governo, mas tem sido levada à cabo por grande parte dos governos estaduais e federais, inclusive o atual. Trata-se de um processo muito amplo de degradação do sistema carcerário brasileiro.
É algo muito inadequado. É evidente que isso não é um acidente ou um incidente, isso é realmente uma situação que era previsível e pode acontecer em outros lugares a qualquer momento.
Nós sabemos que há presença de facções contrapostas em diversos estabelecimentos no Brasil. Há um risco concreto. Então é inaceitável que se trate isso como se fosse um raio que caiu num dia de céu azul.
Seria uma vergonha que nós, em 2017, depois de termos toda uma mudança legislativa decorrente da impunidade do caso do Carandiru, que fizéssemos isso (impunidade dos responsáveis) novamente.
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