Ao sairmos da entrevista com Manoel Monteiro, o maior poeta de cordel da atualidade, no final do primeiro dia de viagem, nós poderíamos ter voltado para São Paulo. Já teria compensado a viagem. O resto foi lucro. O Brasil é um país tão fantástico e tão rico de gente boa que eu nunca tinha ouvido falar neste poeta popular de Campina Grande, muito menos conhecia a sua vasta obra.
Depois de quase duas horas de conversa em sua modesta casa-escritório, posso garantir aos leitores que, no gênero, Monteiro só pode ser comparado a Patativa do Assaré, outro grande nome da cultura nordestina, que tive a oportunidade de entrevistar para a revista Época, quando ele completou 90 anos, no ano 2000. Foi uma das últimas entrevistas do grande poeta que viria a morrer pouco tempo depois.
Seu legítimo sucessor, Manoel Monteiro, assim como Patativa, anda com problemas de saúde, enfrenta o diabetes e usa uma lupa para ler, mas, aos 74 anos, está em plena atividade, escrevendo livros paradidáticos para grandes editoras e acaba de criar o projeto “Cordelando a Paraíba”, em que ele e outros escritores vão recontar a história de cada um dos 223 municípios da Paraíba.
Com a palavra o poeta popular e matuto sábio que será homenageado com o Espaço Manoel Monteiro, no Recanto da Poesia, montado no Parque do Povo durante a festa de São João em Campina Grande.
Brasileiros – Manoel, fale um pouco da sua família, da sua origem. O senhor me disse que é de Bezerros, é pernambucano. O que o seu pai fazia?
Manoel Monteiro – Meu pai era agricultor, um pequeno proprietário, como o pai de Lampião, um homem simples, mas sábio. Não me lembro de meu pai pedindo coisas a políticos. Lembro-me de meu pai trabalhando. Aos domingos, ele ia para o roçado, caminhando com as duas mãos para trás, olhando o que ia fazer na segunda-feira. Então, ele deixou aos filhos dele a educação do trabalho.
Quantos filhos ele teve?
Meu amigo, falaram em 22.
O senhor tem 21 irmãos?
21 irmãos… Muitos irmãos eu não conheci, porque naquela época a mortandade de criança era muito grande. Nascia um e morria dois. Eu conheci só oito. O restante, antes de eu chegar, eles já tinham ido. A família vivia exclusivamente da lavoura, até 1945. Muitos dos meus irmãos uns três ou quatro, já estavam no Recife. Meu pai vendeu a pequena propriedade e fomos para o Bairro de Afogados, no Recife. Eu já levava os meus primeiros desejos de fazer versos, de falar como o poeta fala. Porque a primeira vez que meu pai me levou à feira de Bezerros – era uma feira que tinha aos sábados – eu vi um camarada lendo ou cantando um livrinho desse tamanho, exatamente isso aqui (mostra um folheto de cordel). Uma roda, uma aglomeração de matutos, todo mundo rindo, achando aquilo bonito, e eu com certa dificuldade, porque era pequeno, consegui ficar ouvindo e vendo aquele camarada apresentando aquele livretozinho, e todo mundo gostando, e eu gostei da melodia, do ritmo, porque era poesia, literatura, poesia de folheto, hoje se chama cordel, mas eu não gosto do nome de cordel.
Como então o senhor prefere chamar seu trabalho?
Esse meu trabalho aqui eu chamo Cordelaria Poeta Manoel Monteiro. Este nome tem no dicionário do estudo da literatura popular e diz que fui eu que inventei, mas não foi. Devo ter ouvido em algum canto. Chamo de cordelaria, porque cordel não é um nome usual no Brasil. Ninguém diz: “Me dê aquele cordel”. O sujeito diz: “Me dê aquele cordão, me dê aquela embira, aquela tira, aquela fita”, e não cordel. Mas, brasileiro tem essas coisas… Agora, nós estamos falando inglês, eu estou sem me fazer entender, porque a língua agora é inglesa. É 90% de inglês e 10% português.
O senhor estudou até que ano?
Ah, rapaz, aí é meio complicado pelo seguinte: oficialmente, eu fui até o terceiro ano primário, no Recife, no Grupo Escolar Amauri de Medeiros. A essa altura, que era a década de 1950, meu pai adoeceu e foi em busca de auxílio médico, sem dinheiro… O que o médico disse para ele? “O senhor mudando de ares, indo para o sertão, o senhor vai ficar bom”. Por quê? Para se ver livre dele. Então, o meu pai acreditou no doutor, vendeu a casa, e aí fomos para o sertão. O médico queria se ver livre do doente que não tinha dinheiro. Hoje é que eu sei disso. E meu pai morreu à míngua no sertão, tudo indica que foi de diabetes, uma doença que, inclusive, hoje eu tenho. Bom, meu pai foi para o sertão e eu, que era o menor, fui com ele para Pajeú das Flores, alto sertão pernambucano. Eu estava já contaminado pelo vírus da poesia. Porque um dos meus irmãos, o Absalão, comprava livros, o que não era comum na minha família. Na minha família se comprava enxada, machado. Então, eu vi Castro Alves falando dos escravos, chorava mais que Madalena… Hoje, sei que minhas lágrimas foram perdidas, mas naquele tempo eu chorava demais com o sofrimento dos escravos. Casemiro de Abreu, Castro Alves, Fagundes Varela me encantavam. Parece que eu aprendi a ler para ler poesia. Eu tinha uns oito, nove anos.
Quem ensinou o senhor a ler?
Foi um professor chamado Pedro Firmino, que era um homem simples, humilde, como eu também, como todos da região. Ele não gostava de trabalhar, como eu também não gosto de trabalhar, nunca gostei. Tenho trabalhado, mas sempre de má vontade, não gosto de trabalhar. Esse camarada, de dia ele tinha uma escola e, à noite, uma viola. À noite, ele fazia cantorias nas casas das pessoas. Quer dizer, vivia de maré mansa.. Ele foi meu mestre, me ensinou o beabá. Ora, eu vi e ouvi aquele poeta na feira de Bezerros lendo poesia, eu fiquei encantado, queria fazer aquele trabalho.
Queria ser como ele?
Como eu podia fazer aquilo se eu não sabia ler? Então, eu consegui aprender a ler os cordéis e passei a ser convidado para ir à casa de vizinhos, ler folheto. Aí, eu já ganhava um dinheirinho, as pessoas me pagavam, davam um cafezinho, às vezes até matavam uma galinha, alguma coisa, porque eu era o único em redor de uma légua, como dizia Pinto Monteiro, que sabia ler. As pessoas compravam folheto sem saber ler.
O senhor tem quantos folhetos publicados?
Tem 150, eu acho.
O senhor ganhou recentemente o prêmio de melhor cordelista do País, outorgado pela Associação Brasileira de Literatura de Cordel. Onde funciona essa associação?
No Rio de Janeiro, em Santa Teresa, eu estive lá há um mês mais ou menos, quando recebi o prêmio. O cordel está novamente em evidência.
É tema até da novela das seis da TV Globo, Cordel Encantado…
Aquilo ajuda também. O pessoal da Globo esteve aqui na minha casa, conversou bastante comigo, mas não falou nada de novela. Estavam coletando material. Os meus trabalhos mais recentes não seguem essa linha do tempo em que eu tinha que vender o folheto na feira. Hoje, me dou ao luxo de escrever aquilo que eu acho que é conveniente, porque eu não tenho só uma feira, tenho todas as bancas de revistas e todas as livrarias do Brasil. Então, eu ainda deixo em consignação, quer dizer que hoje eu sou rico.
A pessoa aprende a escrever cordel ou já nasce sabendo?
Aprende, porque esse é um estilo literário. Agora, poesia você só faz se tiver nascido poeta, esse é o meu ponto de vista. Por mais inteligente que a pessoa seja, ela não consegue…
Poesia, só se nascer poeta.
Do contrário não tem jeito.
Agora me diz uma coisa, a que o senhor atribui essa febre do cordel?
É muito boa pergunta. Olhe, eu acompanhei o auge do cordel, sou testemunha ocular do sucesso do cordel. Aqui em Campina Grande tinha feira de ter 10, 12 cordelistas, com uma malazinha num canto vendendo os seus folhetos. O auge do cordel vai até 1950. Por que o auge do cordel? A aquisição de jornais, revistas, rádios, aqueles que a gente chamava rabo quente – se você pusesse a mão por detrás do rádio, você levava um choque – era em poucas casas. Não tinha informação. Eu fui rico aqui em Campina Grande um tempo, porque quem chegou na feira pela primeira vez com a morte de Getulio em cordel fui eu. Foi um sucesso. Do folheto A Morte de Getulio foram vendidas 11 mil cópias em umas três, quatro semanas, coisa que passaríamos sei lá quantos anos para vender. Isso em 1954, então fiquei rico. Começava assim: “Eloim me encaminhai em tuas veredas largas, para eu descrever em versos as últimas horas amargas da vida do Presidente Getulio Dorneles Vargas”.
Que assunto vendia mais?
A gente fazia oração também. Escrevia oração e falava aos matutos que aquilo fechava o corpo. Vendia orações. Por isso eu não compro orações hoje a ninguém, nem quero que o camarada me dê. Quando me oferecem, eu digo: “Isso aí eu já conheço. Eu fiz isso”. É para fechar o corpo, ganhar dinheiro, o inimigo não acertar, arrumar mulher, para ser feliz na vida. Porque isso era cultura nordestina, que Lampião, inclusive, usava. O sujeito dobrava direitinho e botava na carteira, não deixava a oração de jeito nenhum, só andava com ela. Lampião usava para assaltar as pessoas, para ele ganhar e o sujeito perder. Ele acreditava nisso. O problema é que o oficial que matou ele também tinha outra oração, mas aí já é outro departamento… Tenho um folheto que fala mal dele: Lampião – Herói de meia tigela.
O Rei, como alguns o chamam,
Se foi rei foi da maldade
Pois viveu de sequestrar,
Matar por perversidade;
Quando o diabo o levou
Como herança só deixou
Luto, tristeza, orfandade.
A televisão estava nascendo naquele ano…
Isso, exatamente. Começaram a aparecer os primeiros aparelhos em preto e branco, em pouquíssimas casas, não é verdade? Aí, foi surgindo e tal. Chegou, para completar, o radinho de pilha, que o matuto em vez de levar um folhetinho no bolso, estava com o rádio de pilha ouvindo música, notícias e o que interessava a ele. O cordel como toda cultura de massa não morre. Isso quem diz sou eu e vou continuar dizendo, porque eu acho que é verdade. Cultura de massa não morre nem quando aquela sociedade morre. Aí, aquilo que eu falei e falo: “Os filósofos gregos ficavam nas praças, quer dizer, aquela sociedade, aquela civilização foi embora e hoje continuam aqueles homens sendo estudados”. Talvez tenham deturpado o que eles disseram, mas continuam sendo estudados Sócrates, Platão, etc. Porque eles faziam cultura de massa, faziam nas praças… Os filósofos ficavam lá e tinha um monte de escravos, cada qual com uma pedra e cinzel gravando o que podia daquela filosofia. A obra sobrevive à própria sociedade. O cordel foi para as universidades do mundo. Veja bem, não foi só do Brasil, não. Enquanto ninguém queria cordel, diziam que o cordel já morreu, e muita gente escreveu isso, estava sendo estudado nas principais universidades do mundo.
Cordel passou a ser chique, cult?
Olha, o que acontece é o seguinte: o cordel na minha mão é uma coisa, mas o cordel na mão de doutor, do mestre, do sujeito que tem curso na Europa, etc, é outra. Um dia desses me informaram, aqui na universidade de Campina Grande, que o maior acervo de cordel do momento está em uma universidade americana. O senhor tem conhecimento do trabalho do Ariano Suassuna?
Sim, sim. Ele é daqui da Paraíba. Não é?
Ele é daqui da Paraíba. Ariano Suassuna faz todo o trabalho dele escudado, alimentado, bebendo na fonte do cordel. Eu digo porque já ouvi ele dizer muitas vezes isso, o que eu acho bonito, a honestidade. Quando o cordel volta pela mão dos professores, aí, eu vou falar, porque estou aqui falando com você, eu posso ser um bom exemplo disso. Eu que sou do tempo do auge e da queda do cordel, estive também, talvez até motivado por isso, afastado um pouco. Eu tinha que criar os meus sete filhos, fui gráfico, revisor do Diário da Borborema, um jornal local, e depois representante comercial de calçados.
Houve um momento na vida, no começo da sua vida adulta que o senhor viveu do cordel e depois foi caindo, é isso?
Eu cheguei aqui vivendo de cordel, depois houve a queda… E, depois, milagrosamente… Milagrosamente, nada, não há milagre nenhum, há um trabalho. Há um trabalho de base, um trabalho de alicerce que vinha sendo feito, não por cordelistas, não por poetas, mas por acadêmicos. O que houve com o poeta tradicional? Eu sou um poeta tradicional e digo que tive a sorte de me moldar aos novos tempos, coisa que alguns colegas meus não conseguiram.
Como é esse “se moldar aos novos tempos”? Qual é a receita?
A receita é o seguinte: é produzir um texto século XX e agora século XXI. Esta abordagem, nós temos aqui para lhe mostrar, bem atualíssimo. Olhe esse aqui, está novinho, novinho: Verbos, Versos e Rimas e Nova Ortografia. Quando eu falo cordel século XXI, estou falando de textos que possam ir à escola brasileira, não à escola nordestina, à escola brasileira mesmo, para auxiliar o professor. Auxiliar o professor, é muito importante que se diga, porque a primeira impressão que pode deixar é que estou querendo vender folheto nas escolas brasileiras.
Você tinha me falado que estudou só até o terceiro ano primário, mas vejo nos folhetos que a sua erudição, o seu conhecimento, a sua sabedoria vão muito além disso. Você não voltou mais tarde para a escola?
Voltei algumas vezes. Agora, tinha ao lado da porta da escola outra porta aberta, que era da bodega. Aí, entre a cachaça e o livro, eu ficava mais tempo na porta da cachaça. Quando eu saía da livraria ou do jornal, ou de qualquer canto, ia para lá. Eu não me formei, não foi por falta de dinheiro, não foi porque eu trabalhava, nem nada, porque às vezes dizem isso: “Fulano não estudou porque…”. É mentira, é papo furado. Não estudou porque não quis! O sujeito proíbe fumar maconha, o povo fuma; proíbe roubar, os caras roubam… Não estudou porque não tinha vontade. Então, eu poderia ter me formado, não me formei por causa da bodega. Eu achava enfadonho o banco escolar…
Mas o senhor ainda vai para bodega ou não?
Vou não, eu não gosto de quem bebe, não gosto de quem planta fumo, porque quem bebe conversa muita besteira e eu não tenho muito tempo para isso, eu achava que naquele tempo era bom. Larguei a bodega faz tempo, desde que eu fui obrigado a tomar uma injeção diária, faz uns 15 anos.
O senhor trocou a cachaça pela injeção…
Pela injeção… Hoje, já tomo duas injeções diárias por causa do diabetes.
E, agora, o senhor pode viver novamente só do seu trabalho no cordel?
Eu vou dizer uma coisa que nem gosto de falar…, mas eu vou dizer porque você está fazendo um trabalho honesto. O cordel nunca esteve tão rentável. Eu ganho um salário mínimo de aposentadoria do INSS, mas isso para mim hoje não tem nenhuma importância. Agora, isso tem um porquê, tudo tem um porquê.
Mas foi o senhor quem resolveu escrever esses livros ou foi encomenda?
A maioria me foi encomendada. Deixe-me resumir para você uma coisa: eu pego um conto, que vem de mais de 400, 500 anos e me dou ao luxo de fazer uma releitura dele. Por quê? Porque muitos deles não são educativos. Como um camarada velho da minha idade, semianalfabeto, porque terceiro ano é semianalfabeto, se dá ao luxo de dizer isso? Pego a Gata Borralheira como exemplo clássico. O final da Gata Borralheira é que as pombazinhas que beneficiaram a menina, cegaram as duas mocinhas más. A mocinha casa com o príncipe, ficou muito bem. E as duas mocinhas perversas são cegas pelas pombazinhas. Ora, isso não passa na minha leitura.
Aí, o senhor muda o final?
Mudo.
O senhor quer sempre um final feliz.
Eu quero. Veja os animais, não tem animal ruim. A beleza, a graça, a ternura dessa história morre no fim do conto tradicional, porque as duas mocinhas perversas são cegas. Esses meus livretos estão sendo adotados pelas escolas. Daí é que vem a minha renda. Fazendo essas releituras, eu imaginei que estou certo. Mas eu tinha que ter uma comprovação disso. A Scipione, da Editora Abril, que é a maior editora da América Latina, entrou em contato comigo faz uns cinco anos, inclusive me convidou para uma feira de livros em São Paulo. Eu nunca vi tanto livro. Passei uns dois ou três dias lá dentro. Estive lá como escritor convidado, com toda mordomia e tal, poeta popular. Eu vi que estou certo, porque eles me pediram para contar em versos aquele conto A Espanha Inglesa, de Cervantes, e eu atualizei um pouco a história. De 1500, trouxe para os tempos do Bush, que saiu ontem da presidência dos Estados Unidos. Porque eu pensei o seguinte: “Como é que eu vou levar uma história para a escola brasileira que aconteceu mais de 500 anos atrás. Não vai ser entendida pelo alunado. A gente já acha estranho pegar qualquer romancista da literatura brasileira ou portuguesa do século passado. E de 1500?
Para quem acompanhou toda essa história do cordel, das feiras do sertão à academia brasileira e às universidades estrangeiras, qual diferença mais lhe chama a atenção?
Trinta anos atrás não passaria pela cabeça de um matuto como eu oferecer um livro para alguma grande editora. Cordel era só coisa de feira, de festa de São João. E hoje está funcionando como um braço da universidade. Está aqui: O Homem Pré-histórico. Isso aqui é trabalho dos alunos. Todo cordel novo tem uma notinha feita por alguém da universidade, já com mais responsabilidade. Por isso que o cordel está em evidência, por causa do novo cordel. Um cordel desse, olha só: correção do texto pela professora Fabiana Ramos. Quer dizer, é só para uma pessoa com pouco conhecimento da importância desse material não notar que a diferença hoje é grande. Ainda tem conservadores, eu mesmo me considero conservador e estou dizendo que estou errado, mas não sou conservador no texto, porque o texto tem que ser escrito corretamente. Aquela poesia do meu amigo, que não tive o prazer de conhecer, o Patativa do Assaré, aquela parte da poesia dele, da chamada poesia matuta, é descartável hoje para mim.
Como o senhor se posiciona perante o que acabou de falar, sobre a polêmica do livro lançado pelo Ministério da Educação, em que o errado pode ser considerado certo, porque há um preconceito contra a linguagem falada em relação à linguagem culta?
Acompanhei essa discussão toda, e aí eu fui ao Rio receber esse prêmio, para dizer lá na Academia Brasileira de Literatura de Cordel isso que estou dizendo aqui ao senhor. Tenho colegas, e são colegas meus da academia, que ainda continuam vendendo folheto na feira de São Cristóvão, no Rio, com chapéu de couro, e eu acho aquilo ridículo, porque isso aqui é literatura popular brasileira e você não precisa se fantasiar para vender nem para trabalhar com ela.
Não precisa falar errado.
Não, de jeito nenhum. Olha, o que ajuda você, ao seu neto, ao seu filho falando errado para ele? Você não ajuda nada. A palavra é uma aqui, no Rio Grande do Sul, no Maranhão, em qualquer canto. A palavra é uma só, a pronúncia é uma só e o português é um só. Você vai encontrar palavras estropiadas, mas é questão do camarada, que está fazendo aquilo porque quer. A língua portuguesa é uma só e é para ser escrita corretamente.
A gente pode dizer que hoje o senhor tem uma vida confortável, tranquila, graças aos folhetos de cordel e aos livros escolares que escreveu?
Eu sou rico, meu amigo. Eu já fui rico quando Getulio morreu, depois empobreci, hoje sou rico de novo. Eu sou rico pelo seguinte: devo comer menos e estou comendo muito, então estou rico demais. Tenho dinheiro para comprar os remédios, então não preciso ficar na fila do posto de saúde.
Para encerrar, gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a sua vivência com as festas de São João em Campina Grande. Por que aqui é o maior do mundo, de onde vem essa certeza?
Os prefeitos das cidades brasileiras, principalmente nordestinas, notaram, descobriram – tardiamente até, eu diria – que turismo traz dinheiro, traz progresso para a cidade. Então, os carnavais fora de época, as festas de um modo geral, começaram a ter a participação do Estado e do Município, investindo na divulgação. Antigamente, o sujeito fazia uma quadrilhazinha lá no bairro, junto com uns amigos fazia uma brincadeira e tal, porque isso é uma tradição brasileira. Quando os governos municipais viram que fazer festas típicas que agregam pessoas pode gerar dinheiro para a cidade, começaram a investir e até há uma disputa entre cidades. Nós podemos citar o caso de Caruaru e Campina Grande como exemplo. Cada qual quer fazer o maior São João. Isso é bom para Caruaru, bom para Campina Grande. É como o cordel que está em evidência, dado ter despertado o interesse das principais editoras, dos jornais, das revistas, da televisão. É onde vemos o casamento da cantoria de São João com a poesia popular. Aí engloba cantadores, violeiros, etc. Assim como o cordel está em evidência, não por causa desse negócio da Globo, que está ajudando e vai ajudar muito, mas ele estava em evidência antes, tanto que despertou o interesse da Globo, o São João também está. Outro dia, em uma banca de jornal, vi um jovem de aparência grã-fina olhando os expositores de cordéis. Bom, eu perguntei ao rapaz: “Me diga uma coisa, colega. Você está comprando cordel porque você gosta?”. Ele explicou: “É que eu vou fazer o vestibular e fui obrigado a comprar um cordel. Eu não tinha lido ainda, li e gostei”. Perguntei quem o mandou comprar outro agora. Ele disse: “Agora, estou comprando por minha conta mesmo”. Isso é um prêmio para mim, isso é o mesmo que dizer está aqui um bilhete da loteria premiado.
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