Os governos do PT construíram um modelo de desenvolvimento com muitos equívocos, mas cuja maior virtude foi uma melhora no mercado de trabalho e na renda dos mais pobres. Esse modelo se apoiou na criação de um mercado de consumo de massas formado a partir de políticas de distribuição de renda e da ampliação do acesso ao crédito. Entre 2006 e 2011, esse modelo proporcionou um ciclo virtuoso de crescimento com distribuição de renda, em que os aumentos de salários contribuíram para dinamizar o mercado consumidor e para induzir o investimento em diversos setores econômicos. Nesse período, a taxa de investimento cresceu mais do que o consumo e do que o PIB, com exceção de 2009 por conta da crise internacional.
Esse modelo teve lacunas, uma vez que foi centrado na inclusão social pelo mercado de consumo de bens privados e não de bens públicos, permitiu à população mais pobre ascender ao mercado consumidor sem, no entanto, ampliar de forma razoável o acesso à cidadania e aos direitos sociais. Esse modelo também teve fragilidades que vieram à tona a partir da crise internacional de 2008 e que consistiram essencialmente na ausência de uma estratégia coordenada para o desenvolvimento produtivo. Adaptando os termos de Celso Furtado, o Brasil promoveu uma modernização dos padrões de consumo da população sem promover uma modernização equivalente da estrutura produtiva.
Nesse período, recuperou-se parte do arcabouço desenvolvimentista, mas de forma tímida e fragmentada. Sobretudo, não houve coesão institucional e planejamento estratégico. A política de crédito dos bancos públicos, por exemplo, pouco conversava com as políticas tecnológicas, que não dialogavam com a atuação das empresas estatais, que, por vezes, se opunham à política macroeconômica do governo. Nesse último ponto, a persistência de altas taxas de juros e, em particular, de uma taxa de câmbio apreciada contribuíram para o enfraquecimento do setor produtivo brasileiro.
Os efeitos da crise internacional agravaram os problemas produtivos e tornaram evidente a queda de competitividade das empresas brasileiras. O cenário internacional mudou completamente e acirrou a disputa por mercados, e as exportações de países como a China, diante da desaceleração da demanda nos países centrais, foram redirecionadas para países com algum dinamismo no mercado consumidor, como o Brasil. Nesse contexto, as cadeias produtivas brasileiras foram sendo corroídas pelo aumento do conteúdo importado e o empresário brasileiro foi se tornando cada vez mais um importador.
Nesse contexto, em 2011, quando Dilma assume, o modelo de desenvolvimento já dava sinais de esgotamento por motivos domésticos (ligados à perda de dinamismo do ciclo de consumo e de crédito) e externos (por causa da crise internacional e do acirramento da disputa por mercados). Era hora de mudar a orientação do modelo econômico e a opção estratégica mais adequada era transferir o elemento dinâmico do mercado de consumo de massas para a expansão da infraestrutura produtiva, urbana e social, e assim estimular o investimento e a produtividade. Nesse plano, o governo Dilma apostou equivocadamente suas fichas no setor privado por meio de políticas de oferta, como a ampliação do crédito subsidiado, as concessões públicas, o realinhamento de preços macroeconômicos (redução de juros, logo revertida, e a desvalorização cambial), a redução de custos de energia e a forte desoneração fiscal. Essa última política marca uma gestão fiscal desastrada, também caracterizada por um forte ajuste fiscal em 2011, que freia a economia brasileira, e por manobras contábeis.
Como resultado, o setor privado não respondeu aos estímulos do governo e a combinação de baixo crescimento com desoneração fiscal gerou uma enorme queda na arrecadação que deteriorou fortemente as contas públicas. Nada disso seria tão grave se não servisse de pretexto para uma virada na política econômica a partir do segundo governo Dilma, quando se optou por um choque monetário (de aumento de juros), um choque fiscal (de corte de gastos) e um choque de preços administrados (que aumenta a inflação e reduz salários reais), além da incorporação de uma agenda de reformas proposta pelo mercado. O resultado é uma desconstrução gradual do modelo distributivo que começa pela forte deterioração do mercado de trabalho, com redução da renda e aumento do desemprego, e avança pela via da redução do gasto social e das reformas liberais.
Essa desconstrução ganha força com o discurso econômico liberal, dominante no debate público. Neste, o equilíbrio fiscal é o objetivo primordial a ser alcançado e o caminho passa por inevitável corte de gastos públicos e por reformas que permitam mais cortes de gastos públicos. Defende-se que existem “evidências empíricas” que mostram de forma inequívoca que, para colocar o País nos trilhos, é preciso que se eliminem benefícios sociais, se reduzam os salários reais e se aumente o desemprego, ou seja, que os mais necessitados paguem a conta.
Esse discurso, supostamente técnico, esconde considerações ideológicas e filosóficas que atestam que o egoísmo é uma virtude social, que a justiça social deve estar fundada na meritocracia promovida pelo mercado e que a desigualdade é um incentivo ao crescimento econômico. Assim, modelos empíricos são frequentemente contaminados por uma circularidade na qual, partindo do pressuposto de que o mercado é virtuoso, conclui-se que é preciso mais mercado e menos Estado. Independentemente da boa vontade de quem o defende, esse discurso serve a determinadas classes sociais e interesses específicos que disputam politicamente os rumos do desenvolvimento brasileiro.
Enquanto isso, alguns economistas, como este que vos escreve, têm procurado alertar para os perigos da austeridade econômica e para ineficácia de ampliar cortes de gastos nas condições econômicas atuais. É o crescimento econômico que vai melhorar as contas públicas, e não o contrário. A saída da crise não passa por amplos cortes de gastos públicos, muito menos por reformas que reduzam o papel social do Estado brasileiro, mas por um plano emergencial dirigido à recuperação do crescimento econômico e à redução do desemprego
*Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador editorial do Brasil Debate (www.brasildebate.com.br).
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