A polêmica em torno da cruzada do atual prefeito de São Paulo, João Doria, contra a pichação nos coloca diante do dilema da produção cultural de ideias questionadoras. O axioma que reza “pichação também é arte” direciona a uma aporia que divide dois posicionamentos. De um lado, aquelas e aqueles que defendem a dignidade das práticas culturais populares, exigindo a nomeação da pichação (ou, por vezes, graffiti) como uma modalidade artística, colocando no mesmo patamar a produção de “artistas” anônimos, que se expressam aplicando tinta em muros, e a arte consagrada das galerias. De outro, aquelas e aqueles que defendem a inutilidade, ou mesmo a inadequação, de tal exigência, na medida em que ela atua sob o mesmo padrão de definição do que é bom e belo, limando o aspecto dessacralizador do próprio ato ilegal de contestação aos padrões éticos e estéticos que envolve tal atividade. O pixo contra a street art.
João Dória quer criar murais na cidade, “próprios” à prática da arte sobre muros, pois, segundo ele, “São Paulo não é lugar de pichador” (O Estado de S. Paulo, 26.1.2017). Nesse ato, busca cooptar e dividir os praticantes da tal “arte”, apresentando belos murais que podem, mais tarde, ser expostos em galerias. A street art, como já existe. Mas a prática da pichação, no seu conteúdo crítico, pode se inscrever nas arestas da forma consagrada pelo campo artístico? Sempre haverá uma parcela de indivíduos que se rebelarão contra as formas impostas pelo gosto da elite.
A parcela de rebeldes representa o povo explorado? Certamente sim. E não. João Bernardo, em Os Labirintos do Fascismo (2015), argumentou que as classes dominantes buscam incessantemente impor às exploradas sua própria forma de organização, de modo que os processos de contestação revolucionária passaram por alguma forma de auto-organização da classe trabalhadora. O fascismo é, entre outras coisas, resultado de momentos de incapacidade dos de baixo em lutar contra a hetero-organização imposta pelas elites.
Desse modo, o pixo, como prática autônoma das marginalizadas e marginalizados, é, em si, um ato dessacralizador e contestador dos padrões de dominação e, portanto, contribui para a formação de uma cultura questionadora do sistema de exploração capitalista.
Mas quais os seus limites? Na trama dos processos de dominação ideológica, pode-se dizer que não há dominação sem a complacência das dominadas e dominados. Um ato pour épater le bourgeois só choca na primeira vez. E choca também aos nossos iguais, de modo que se pode questionar sua potencialidade organizativa e mobilizadora. Travar uma batalha no seio da “política do olhar” não seria um ato igualmente questionador, mesmo que, por vezes, trabalhe sob a mesma perspectiva da “forma” consagrada pela elite? Cumpre recordar, como apontou Pierre Bourdieu, que a definição do “gosto” é um aspecto constitutivo das formas de diferenciação social. Como afirmou o sociólogo francês, em A Distinção (1979, VIII):
A negação da fruição inferior, bruta, vulgar, venal, servil, numa palavra, natural, que constitui, como tal, o sagrado cultural, encerra a afirmação da superioridade daqueles que sabem se satisfazer dos prazeres sublimados, refinados, desinteressados, gratuitos, distintos, para sempre interditados aos simples profanos. É isso que faz com que a arte e o consumo artístico sejam predispostos a preencher, quer queiramos ou não, quer saibamos ou não, uma função social de legitimação das diferenças sociais.
É forçoso não olvidar que a arte pela arte é a vingança de sujeitos que, malgrado serem, por vezes, deveras questionadores, têm a vida ganha, contra aquelas e aqueles que não podem filosofar apenas nos momentos de recreio. E os axiomas mais radicais provêm, em geral, daqueles e não destes. Em todos os casos, a política de João Doria é de uma “cidade linda”, em que linda, significa de elite, anti-pobre, onde empreiteiras e incorporadoras tenham um terreno aberto para fazer sua “arte”.
E esta conversa não é (só) sobre arte.
*Felipe Castilho de Lacerda é mestrando do programa de História Econômica da USP.
Referências
BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta. 2. vers. remod. e muito ampl.. s/l, s/n, 2015.
BOURDIEU, Pierre. La Distinction. Critique Sociale du Jugement. Paris, Éditions de Minuit, 1979.
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