Talvez não haja nos bastidores do Theatro Municipal de São Paulo um personagem tão real quanto Aníbal Marques, ou melhor, o seu Pelé, cenotécnico há 36 anos do teatro mencionado. Quando insisto em chamá-lo de “Seu Pelé”, ele já descontrai e dá um tom simples e leve a nossa conversa: “Seu Pelé não, pô, só Pelé tá bom”. Da mesma forma que não há um personagem tão real, possivelmente não há alguém tão apaixonado e devoto quanto Pelé ao teatro em que cresceu: “Isso aqui é minha vida. É minha casa. Eu não me vejo longe daqui. Aqui eu ficaria até de graça”, conta um Pelé com olhos lacrimejantes e a voz embargada. “Desculpas”, ele pede quando quase sem voz tenta dar dimensão oral sobre o quão importante o mais antigo teatro de São Paulo é para ele.
O romance com o Municipal é circundado de uma atmosfera nostálgica e familiar. Aos 5 anos de idade, Pelé brincava pelo palco e pelos corredores do teatro enquanto o pai, Geraldo Marques, trabalhava como maquinista. “Meu pai era muito conhecido aqui. Todo mundo chamava ele de Batucada, era o apelido dele”, lembra Pelé dono de uma voz tranquila. Do pai veio a herança pelo teatro como trabalho e do teatro veio o apelido. “Todo mundo me chamava aqui de Pelézinho. ‘Oh, Pelézinho, vem aqui!’ Começaram a me chamar assim nos anos 1970 e o Pelé estava no auge, né e o apelido pegou. Mas fora daqui me chamam pelo meu nome mesmo”, conta.
Dos sete irmãos, somente Pelé seguiu o destino responsável por criar o que chama de “ilusão”. “Aqui a gente faz a mágica acontecer”, diz com orgulho. “Por que você sabe, teatro é ilusão. Quando as pessoas vêm aqui elas não querem saber o que tem por trás, elas querem ver a mágica acontecer”. E dar realidade à ilusão requer responsabilidade, pulso firme e um bom estômago, já que a ansiedade é gigantesca. “A gente coloca bailarino e ator para voarem aqui no palco. Imagina se algo dá errado? Não pode de jeito nenhum”, fala ele batendo com a mão fechada três vezes no púlpito de madeira a sua frente. Sem púlpito ou não, Pelé é também um grande maestro. Responsável pela montagem da cenografia do teatro, é ele quem comanda uma equipe de aproximadamente 20 pessoas. “E essa molecada aí é minha família”, aponta ele com a cabeça para alguns rapazes que instalam um novo tablado para a apresentação do balé que acontecerá no próximo sábado, 25, aniversário da cidade.
De Gianni Ratto à Baryshnikov, Ritta Lee e a Europa
As histórias que marcam a memória de Pelé coincidem com a própria história do Theatro Municipal, construído em 1911 para ser um dos ícones culturais do país e onde a elite da época esperava por se inspirar e emocionar com as mesmas apresentações que subiam aos palcos de Paris. Quando começou a trabalhar no Municipal, aos 19 anos de idade, Pelé teve a oportunidade de aprender com “os melhores”, como ele mesmo diz. “Eu aprendi tudo com o meu pai. Mas eu também tive ótimos mestres aqui, uma escola muito boa. Já trabalhei com diretores do mundo todo”, conta. “Sabe o Gianni Ratto? Pois é, eu já trabalhei com ele”. O italiano que se mudou para o Brasil em 1954 foi um importante cenógrafo e diretor de teatro. Faleceu em 2005, em São Paulo.
Das montagens que mais o marcou, Pelé lembra do “Bolero de Ravel”. Era os anos 1980 e Pelé assistia da coxia a uma mesa vermelha redonda no centro do palco e o bailarino russo Mikhail Baryshnikov dançando sobre ela: “Ver o Baryshnikov ali, dançando uns 30, 40 minutos naquela mesa vermelha, rodopiando… Nossa, aquilo me marcou muito. Não esqueço até hoje”, conta emocionado.
Além do Municipal, Pelé também trabalhou como cenotécnico de outros teatros de São Paulo e foi responsável também pela montagem de outros cenários e palcos. Caso de um dos shows da Rita Lee em 1986, quando saiu para viajar com ela e banda durante seis meses. Por conta do teatro também atravessou o oceano atlântico até chegar à Praga, na República Tcheca para um importante festival de cenografia. “Ah, é muito lindo lá. Fui também para África por conta do teatro”, lembra.
Se existe vida além do Theatro Municipal, Pelé não questiona, pois não há mais como desassociar uma do outro. “Eu tinha tudo para ser um bandido. Eu fui uma pessoa criada na rua, não tinha onde morar. Meus pais eram separados, eu tinha sete irmãos. Então, imagina. Eu dou graças a Deus ao teatro, porque quando eu vim para cá fui acolhido. Com quatro meses de trabalho aqui, eu consegui comprar meu primeiro carro. Um Chevetinho 1974. Foi a coisa mais linda do mundo. Imagina, você com 19 anos e com carro!”, diz Pelé reticente pela sensação que a lembrança lhe causou e logo abre um sorriso no rosto como se vivenciasse aquela experiência novamente.
Próximo de completar 55 anos, Pelé lembra que faltam uns quatro para ele se aposentar, algo do qual ele não quer prever muito ou, tampouco, antecipar. “Ah eu não penso sobre isso não. Esses dias me falaram que estavam vendo a minha aposentadoria. E eu falei: ‘po, vocês já estão querendo me aposentar? Não chefinho, me deixa mais um tempo aí”, brinca. “Eu não vou parar de trabalhar não. Não sei o que vai acontecer daqui pra frente, uma hora a gente tem que sair, né? Mas vamos ver no que dá”, completa. Se depender de Pelé, ele será o último a apagar as luzes do Theatro Municipal e o primeiro a querer montar a próxima cena. “A gente só sossega quando a plateia aplaude e vem o maestro ou o diretor aqui agradecer, dar os parabéns. Aí nosso trabalho acaba”. Até começar tudo de novo, como deve ser.
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