Ahmd Issa tem a timidez de um adolescente. Vindo do Líbano, está em São Paulo há três meses e não fala uma palavra de português. Ele nasceu e passou a vida no campo de refugiados palestinos de Yarmouk, na Síria, até ser forçado a partir por causa da guerra. Em meio ao fogo cruzado, o campo tornou-se alvo de ataques do Exército do presidente Bashar al-Assad e do Estado Islâmico. O local, cercado pelas tropas nacionais, ficou sem acesso a comida e medicamentos. Há registros de que moradores, esfomeados, se viram obrigados a comer cães e gatos. A população local foi reduzida de 100 mil para 20 mil em poucos anos.
O jovem de 19 anos hoje mora na ocupação Leila Khaled, junto a 57 árabes e 100 brasileiros. A maior parte dos estrangeiros é palestina e refugiada pela segunda vez: primeiro na Síria e agora no Brasil. A ocupação leva o nome da militante da Frente Popular pela Libertação da Palestina, movimento criado pelo médico guerrilheiro George Habash, em 1967. O prédio na Liberdade, bairro central de São Paulo, foi ocupado pelo Terra Livre, movimento de luta por moradia, e o Mopat (Movimento Popular Palestina Para Todos) há quatro meses.
Ahmd lava pratos em um restaurante no Brás, região central da cidade. Trabalha 12 horas por dia, seis dias por semana e recebe salário de R$ 1 mil mensais. Está em busca de um emprego como mecânico, profissão que exerceu durante os últimos três anos.
Hasan Zarif, militante do Mopat, é nascido no Brasil e filho de palestinos. Por falar português e árabe, organiza o acolhimento dos refugiados, intermedeia as entrevistas com jornalistas e foi quem acompanhou Ahmd para uma entrevista de emprego em uma oficina mecânica. “O que é essa arma na sua camiseta?”, pergunta assustado o gerente da oficina a Hasan. O senhor de cabelos brancos se refere à imagem estampada de Leila Khaled com um fuzil na mão. “Mas o menino não fala português? E onde mora? Qual é a situação legal?”, interroga o gerente. Por fim, concorda em fazer um teste com Ahmd por um dia para decidir se irá contratá-lo.
Hasan volta à ocupação e pedidos começam no mesmo instante. Um instalador da NET arruma a internet, um morador brasileiro precisa de intérprete para convencer uma família árabe a deixá-lo montar o armário e uma refugiada marroquina tem de ser levada ao hospital para tratar de um problema circulatório. Tamanha a demanda, Hasan passou a morar na ocupação.
As salas do prédio são amplas, bem iluminadas e ventiladas. São equipadas com geladeiras, fogões e diversos colchões colocados no chão. Cheiro de cigarro e chá se espalha pelos quatro andares ocupados pelos árabes.
“A principal dificuldade de todos os refugiados é a questão da moradia. Tem muitos morando em hotéis do centro, em condições horrorosas e pagando caro por isso. Quando vi a situação, comecei a trazer as pessoas para cá”, diz Hasan. As contas de luz, água e internet são divididas entre as famílias. As decisões são tomadas em assembleias em conjunto com os moradores brasileiros.
Uma das bandeiras do Mopat é o direito ao retorno à Palestina. Para Hasan, a ocupação é uma oportunidade de mobilizar os palestinos em torno da causa. “É interessante ter 50 palestinos reunidos no mesmo lugar, discutindo política o dia inteiro. Não é um bando de pobre coitado. O que queremos é colocar em pauta nossas demandas políticas”, diz.
Mohamed veio do campo de refugiados de Esbern, a 4 km de Damasco, capital da Síria. O local, onde viviam 50 mil pessoas, foi bombardeado pelo Exército durante meses e completamente destruído. Segundo Mohamed, soldados prendiam e executavam pessoas perseguidas pelo governo na fronteira do campo, onde se amontoavam cadáveres. “Do meu grupo de amigos, apenas um sobreviveu”, conta. As tropas de Assad cercam o campo esvaziado para que os moradores não retornem.
Há um ano chegou ao Brasil, com outros seis jovens palestinos. Sem dinheiro suficiente para pagar o aluguel da casa onde viviam, mudaram-se para a ocupação. Mohamed vive de encomendas de comida árabe para eventos. O irmão é cabeleireiro em um salão na avenida Sumaré e também reservou um espaço para o ofício na própria ocupação. “Estou feliz aqui, mas fumo três maços de cigarro por dia”, diz aos risos. “A gente sabe que o Brasil é um país rico, mas com muitos pobres. Não queremos ser um peso a mais. Pedimos que entendam que viemos de uma situação de guerra, com vários problemas psicológicos e sequelas. Quando chegamos aqui, encontramos outra situação de dificuldade. Não tivemos um momento de descanso. O governo deu o visto e a gente agradece, mas eu não quero ficar aqui para sempre.”
Mohamed diz que, dos 850 mil palestinos que viviam na Síria, sobraram 100 mil. “Somos seis milhões de refugiados palestinos pelo mundo. Nosso problema não é com a Síria. É com Israel. Acordo de paz não se faz com terras ocupadas. Se alguém comete um crime, você denuncia na Justiça. Sofremos um crime como povo e não temos a quem recorrer.”
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