Para entender o nosso racismo

Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho
Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho. Foto: Alexandre Alves


Não é possível entender o Brasil sem compreender que um dos pilares que sustenta a sociedade brasileira até hoje – e na qual se estruturou a nossa formação social – é o racismo. Em busca de provocar reflexões em torno desse tema no Brasil e nos Estados Unidos, Ana Luiza Flauzina, advogada e professora da Unilab (
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasiliera), mestre, doutora e pós doutora em Direito e especialista em Criminologia, juntou dois grandes ícones da intelectualidade negra para uma conversa, que gerou o documentário Além do Espelho, sob sua direção. O jornalista Edson Cardoso no Brasil e o cineasta etíope Haile Gerima nos Estados Unidos, travam um debate que aborda temas como violência, academia, resistência, memória e amor.

Fincado no respeito à ancestralidade, o filme transmite a sabedoria, a generosidade, os anos de luta, de descobrimento e de delicadeza de Cardoso e Gerima. “É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões”, explica Ana.

Em um vai e vem de diálogos, a película chama a atenção para um aspecto cruel: o entendimento de que o racismo é um processo de desumanização. “É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência”, afirma Ana. Por isso, a atual perda de mais de 45 mil vidas de jovens negros por homicídio (corresponde a 70% do total) não comove. Não causa revolta na maioria.

O Brasil é o país que mais tempo explorou a escravidão no mundo. É também o que mais submeteu africanos à travessia do Atlântico para servirem de escravos. Essa História do Brasil tem consequências profundas. No racismo moderno, as forças de segurança do Estado tratam de eliminar e encarcerar gerações inteiras de jovens e mulheres negras sob o argumento da “guerra às drogas”. Com a justificativa de combater o tráfico de drogas, criminaliza-se toda uma população, uma comunidade, um perfil de brasileiros.

Parece que esquecemos quem somos. Quem tomba o corpo negro faz questão de apagar a memória (tanto do agressor como da vítima) e tenta deixar escrita outra narrativa: troca de tiros, sujeito armado, resistiu à prisão. “É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado”, afirma a professora. “O saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio.” Gerima chama essa importância de “arma da memória”.

Por conta desse passado, a resistência é uma das principais características do povo negro. “Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado.”

O enfrentamento ao racismo é um compromisso de todo mundo.
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Brasileiros – Por que você quis fazer o filme?
Ana Luiza Flauzina –
Não sei se quis fazer o filme, no sentido de que tive uma ideia e decidi naturalmente construir uma narrativa cinematográfica a partir dela. Na verdade, acho que o filme me escolheu. Quando me veio o insight de registrar o encontro de Edson e Haile, não consegui mais voltar atrás. Me debati bastante, confesso, por estar em outro país, ter pouco contato com o cinema, mas a demanda do compromisso venceu. 

Como foi a escolha dos dois grandes intelectuais negros como referência para a discussão que o filme traz? Como a importância da ancestralidade compõe com essa escolha? 
A escolha foi muito orgânica. Edson é uma referência muito importante na minha vida. É um dos maiores intelectuais negros brasileiros e um militante que fala de entrega, de generosidade. Conheci Haile em 2010 e tive a honra de ser ouvinte em algumas de suas disciplinas na Howard University. Haile é um homem raro, um militante desses que cativa pela doçura e ensina a ousadia. Ouvi-lo falar me deixava com os olhos marejados, ficava com saudades de Edson naqueles momentos, era uma coisa que me tocava de maneira muito especial. Reconheci um no outro de alguma forma e juro que a vontade inicial era somente de apresentá-los, mas entendi que mediar o diálogo deles seria um registro importante pra gente. E isso, claro, calou fundo como uma forma de honrar isso que se chama ancestralidade. Não somente como metáfora e idolatria dos que se foram, mas como concretude dos que nos cercam e nos inspiram, com todos os riscos nisso implicados. De que não se tratam de pessoas perfeitas, de que discordâncias, inclusive com as minhas perspetivas, são um dado, mas que fazem parte do chão que pavimentou e pavimenta a minha caminhada.

Que objetivo você gostaria que o filme alcançasse?
Acho que a maior qualidade do filme é ser acessível. Os dois tratam das mais diversas questões em torno do racismo, da violência, da resistência, do amor, e de tantas outras temáticas, de forma muito generosa. É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões em torno do tema. É um material que pode ser usado na Universidade e em centros comunitários, tem versatilidade pela linguagem que emprega, apesar da densidade das reflexões. Então espero que possamos tomar posse do filme para explorar seu potencial como catalisador de discussões sobre a questão racial.

Edson Cardoso, no começo do documentário, fala sobre o que é o racismo e a desumanização do povo negro. “Racismo é dizer que além do mais não são humanos como nós”. Gostaria que você dissesse o que é o racismo pra você. 

Escolhi essa síntese de Edson na definição de racismo, porque partilho dela. Racismo é fundamentalmente um processo de desumanização. É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência. Talvez seja essa a maior capacidade do racismo. Conseguir naturalizar a dor negra como consenso que não implica as pessoas num dilema ético. É a operação que tranquiliza o sono das elites, enquanto o genocídio abate um contingente tomado como abjeto, menor, descartável. É a herança mais bem guardada dos escombros na escravidão no Brasil e na Diáspora.

Haile Gerima também fala sobre o que é o racismo e diz que “genocídio não é apenas quando você é fisicamente morto. Acontece quando a sua memória é roubada também. É a arma da memória”. Você pode explicar como é esse sequestro da memória? No que isso implica? 
A questão da memória é essencial no enfrentamento ao racismo e isso sempre foi muito claro pra mim. Eu tenho uma formação em Direito e História e acabei fincando pé nas trincheiras jurídicas. Eu sempre digo que saí da História por covardia, porque sabia que ali era o grande espaço da nossa disputa. Me refugiei numa arena que quer se dizer mais relevante mas, na realidade, é mais débil nesse jogo. A forma como se pode mobilizar o passado, acessar as versões das narrativas históricas é um dos maiores trunfos políticos que se pode ter. A subjugação de negros e indígenas só é possível porque temos uma memória cerceada, saqueada. Se você só dá o presente a um grupo marginalizado, ele fica sufocado em sua contingência, inibido de articular resistência e reclamar reparação. É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado. As elites narram essa história como direito adquirido e natural. Resistir a esse estado de coisas é produzir uma contra-narrativa que entenda a desigualdade que nos assola como expropriação e violência. Então o saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio. É isso o que Haile nos mostra de forma brilhante no filme.

Sobre o sistema de cotas, Edson faz uma reflexão importante: não basta que as pessoas negras ocupem espaços nas universidades. As universidades precisam “mudar-se” a si mesmas, sair da orientação europeia e incluir a fundamental história negra. Como você vê essa possibilidade? 
Acho que o debate sobre as cotas nas Universidades é um bom emblema dos nossos desafios. Sobre como essa categoria da inclusão é limitada no que ela produz. O Edson trabalha bem isso. Ele sempre lembra que é possível promover a tal “igualdade racial” sem enfrentar o racismo. Ou seja, não se trata de “colorir” os espaços acadêmicos, mas de negociar os sentidos epistemológicos, a própria forma de se produzir conhecimento. Não se quer, com as cotas, transformar somente a paisagem da Universidade, queremos é salvar a Universidade de sua mediocridade, a partir de uma ampliação das abordagens possíveis. Porque isso é algo de crédito absoluto das elites: essa pobreza da educação superior no Brasil, com uma produção acadêmica débil, principalmente no âmbito das humanidades. São lentes obtusas, que não querem se ampliar, incapazes de dar respostas a questões básicas que assaltam o cotidiano, porque se recusam a encarar o Brasil de frente. Isso inclusive nas fileiras ditas progressistas. A boçalidade colonial é um dado tão arraigado na formação das elites universitárias que não há alento para quebra de paradigmas com os horizontes europeus, nem nos redutos que se auto intitulam críticos. Isso é verdade para quase todas as áreas. Então quando falamos de cotas, não estamos falando de um sistema que está aí não para comprometer a qualidade do ensino, como muitos insistem ainda hoje em afirmar, mas de salvá-lo de sua decadência. Porque não há um sistema de excelência na educação superior no Brasil construído pelos brancos a ser maculado por negros e indígenas. O que há é uma estrutura conservadora deficiente que precisa ser revista para ampliar os escopos de sua produção e intervenção social. Ou as cotas têm esse tipo de horizonte ou se transformam em penduricalho da diversidade neoliberal, que maquia as instituições enquanto reforça suas práticas obsoletas.

Na sua opinião, qual é o papel dos brancos brasileiros no enfrentamento ao racismo? 
Confesso que essa pergunta sempre me perturba um pouco. Porque de alguma forma está implícita uma noção de que a questão racial é uma questão de interesse exclusivo de negros e negras, já que nos compete inclusive dizer o que cabe aos brancos fazerem. A história do racismo é constituída de personagens que sofrem violências e outros que experimentam privilégios frutos dessas violências, naturalizando-os como direitos, como pontua Jurema Werneck. Então a desconstrução dessa teia de vilipêndios cabe a negros e brancos e os caminhos para a superação do racismo pelas pessoas brancas têm de ser descobertos e trilhados por elas. Acho que são as pessoas brancas, experts nos privilégios raciais, que têm de achar as vias para o desmantelamento desse castelo. Pra mim essa questão sempre soa como um espaço da branquitude meio mimado, que quer resposta pronta pra tudo. Como se a transformação social tivesse algum tipo de receita acabada e não se tratasse de trabalho árduo, regado de educação política e compromisso. Ou seja, as pessoas brancas têm se empenhar, assim como nós, para descobrir as armadilhas do racismo, testar possibilidades, encarar seus paradoxos. E não imputar mais um encargo às pessoas negras que, de repente, têm de aparecer com soluções mágicas para o dilema dos seus privilégios. Então o papel dos brancos é se entrincheirar contra o racismo do seu lugar, politizando suas questões e achando respostas efetivas para as violências em curso. 

Por favor, explique, do seu ponto de vista de mulher negra, como se dá a sobreposição do racismo com o sexismo e no que isso implica. 
As questões racial e de gênero, com suas correlatas dimensões de sexualidade, são a espinha dorsal da formação social brasileira. Não há como entender o Brasil sem enfrentar essas variáveis. Pessoalmente, estou cada vez mais preocupada em visibilizar as consequências da associação desses vetores para dentro das comunidades e da militância negra. Tenho dito que temos sido capazes de denunciar os efeitos do racismo para fora, em especial na politização do extermínio da juventude negra, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para desafiar os efeitos do racismo para dentro de nossas comunidades. E nesse enredo, as mulheres negras têm definitivamente tido suas dores e narrativas silenciadas. O sofrimento negro tem sido encapsulado na imagem de uma mãe negra que chora pela perda de seu filho. Se essa é uma imagem bem acabada da nossa tragédia cotidiana, ela não pode ser a única a sinalizar os dados da nossa miséria. Afinal, a dor das mulheres negras não é só derivada da violência infligida aos homens e meninos negros, mas é também provocada por eles. E, claro, aqui estou fazendo a operação oposta do estereótipo que caricatura homens negros como seres violentos, na justificativa do extermínio. Estou falando de como o sentido de masculinidade, que tem assolado as mulheres como um todo, tem de ser pensado no horizonte do racismo. Que pressões sofrem os homens negros e qual a medida da explosão dessas tensões para as comunidades negras? Que engodo há nesse pacto da masculinidade negra e branca que tem sido um desserviço no enfrentamento ao racismo? A pergunta que nós mulheres negras estamos fazendo é: afinal, o que é ser um homem negro cis-heteroconforme? A politização do sentido dessa masculinidade é urgente se queremos enfrentar o genocídio de forma radical. Temos que dar conta não só das mortes provocadas pelas polícias, mas, no mesmo fôlego, das costelas quebradas, dos estupros, e das violências psicológicas. É preciso encarar o que o racismo tem provocado também em nossas entranhas. Há uma nova geração de feministas negras, a exemplo de Carla Ackotirene, que vem consolidando esse tipo de discussão. Mas penso que temos que adensar ainda mais esse debate.

Os dois intelectuais afirmam que a resistência negra, a capacidade de resistir e sobreviver, é um tesouro. Qual o seu ponto de vista sobre isso? 
A resistência é o grande elo que unifica os personagens no filme, como metáfora para o que nos mobiliza como pessoas. É importante que nos apropriemos disso com orgulho. Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado. Steve Biko uma vez disse que “a gente está vivo e orgulhoso, ou está morto”. É dessa matriz do orgulho de ser quem somos sem reservas a que me refiro. Da resistência como fundamento da vida humana, que importa em especial às pessoas negras pelas condições precárias impostas pelo racismo. É isso, como pontuam Edson e Haile, o que nos mantém vivos, nos faz possibilidade constante, nos dá propósito pra seguir.

Por fim, a trilha sonora que acompanha seu filme fala do medo do espelho se quebrar. Você tem medo também? O que significa? 
Essa música tem um significado forte pra mim. Me conecta aos meus avós, que já partiram. Diz de como a ancestralidade vive em nós; de como os legados se reproduzem; de como os espelhos são capazes de refletir memórias. Achei que era uma boa síntese do filme e estava à altura de Edson e Gerima, por inspirarem tantos e tantas a seguirem os caminhos do compromisso. É uma música que não só ilustra, mas diz, ela própria, dos horizontes esperançosos que orientam a caminhada das pessoas negras. Me toca, especialmente, a versão inédita que Cris Pereira fez para o filme, na releitura desse clássico de João Nogueira. Vale a pena conferir.

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