“Do ponto de vista ambiental, a Olimpíada foi um fiasco mundial”, diz biólogo

Baía de Guanabara - Foto: EBC
Baía de Guanabara – Foto: EBC

O Brasil vive nas trevas. E a cultura do pau-brasil é a principal culpada. Mario Moscatelli explica: “É o uso dos recursos naturais até seu esgotamento. O Brasil do século XXI continua sendo uma colônia de exploração do século XVII quando o assunto é a gestão de seus recursos naturais. O que interessa é obter o máximo lucro no menor período de tempo possível, quase que exclusivamente de maneira predatória”.

Moscatelli é biólogo, mestre em ecologia, especialista em gestão e recuperação de ecossistemas, responsável pela recuperação de ao menos dois milhões de metros quadrados de manguezais na Baía de Guanabara e pelo projeto de monitoramento ambiental aéreo Olho Verde.  Há 28 anos denuncia e luta contra a destruição do meio ambiente no Rio de Janeiro: “É um suicídio ambiental e socioeconômico, pois sem água, até onde eu sei, não dá para sobreviver e tão pouco produzir”.

Para ele, a Olimpíada não serviu em nada para avançar na despoluição da Baía de Guanabara – promessa do governo do Estado quando a cidade foi eleita sede dos jogos, e diz que os atletas correm riscos ao competirem nessas águas: “Do ponto de vista ambiental, a Olimpíada foi um fiasco mundial”.

Leia a entrevista completa abaixo:

Revista Brasileiros – Ao longo da sua trajetória trabalhando com saneamento básico e poluição de águas, o senhor viu algum avanço nessa questão? Algum governo soube lidar  melhor com a questão?

Mario Moscatelli – Trabalho nisso desde 1988. Vi alguns avanços pontuais sob intenso esforço e quase que completa falta de vontade governamental. Mas não teve nenhum governo melhor, fala-se muito e faz-se pouco diante do que se diz investir em saneamento.

O senhor já sofreu alguma ameaça por conta do seu trabalho?

Sim, não devido à questão de saneamento, mas à degradação de ecossistemas no município de Angra dos Reis durante os anos de 1989 e 1991, quando era chefe do departamento de controle ambiental da prefeitura de Angra. No caso do saneamento, minhas principais brigas têm sido com o governo do estado – mais especificamente com a estatal Cedae, que monopiliza em diversas áreas o assunto água e esgoto, e o município do Rio de Janeiro, que não executa a ordenação do uso do solo, o que gera em conjunto a degradação ambiental generalizada do ambiente da cidade.

O Brasil figura entre as 10 maiores economias do mundo, com metade de sua população sem saneamento básico. O que explica esse crescimento aliado a tamanho atraso? O senhor já disse que o saneamento básico do Brasil é do século XVII…

1 – Falta de interesse da classe política, que geralmente está mais interessada no que lhe rende votos e recursos financeiros. Provavelmente esse assunto – saneamento – não deve lhe render muito nem um nem outro, portanto não é prioritário;

2 – Passividade da sociedade, que muitas vezes paga, não leva e ainda faz graça sobre o assunto, demonstrando que o assunto ambiental também não faz parte de suas prioridades, refletindo-se na pouca importância, como já dito, que a classe política dá ao assunto;

3 – Uma cultura que transpassa sociedade e classe política, isto é, a cultura do pau-brasil, que é o uso dos recursos naturais até seu esgotamento. O Brasil do século XXI continua sendo uma colônia de exploração do século XVII quando o assunto é a gestão de seus recursos naturais, sejam eles um conjunto ou apenas um determinado recurso. O que interessa é obter o máximo lucro no menor período de tempo possível, quase que exclusivamente de maneira predatória. E o Rio de Janeiro é exemplo típico do que esse tipo de cultura gera numa cidade que era considerada o paraíso ambiental na terra.

Qual a seriedade do problema de saneamento básico para o País? Quais os prejuízos? Por que isso não é uma prioridade do governo?

Vivemos nas trevas, onde nos especializamos em destruir o recurso água, transformando-o quase que exclusivamente em receptor final de esgoto precariamente ou sem qualquer tratamento – é a cultura do pau-brasil. É um suicídio ambiental e socioeconômico, pois sem água, até onde eu sei, não dá para sobreviver e tão pouco produzir, pagar impostos, enfim, termos algum tipo de sociedade, mesmo sem civilidade.

Os prejuízos vão da perda de biodiversidade e oportunidades econômicas até a inviabilidade da sobrevivência de núcleos a metrópoles. Infelizmente, sociedade e poder público continuam brincando e dando pouquíssima importância para um assunto que há milhares de anos tem vitimado e dizimado uma série de sociedades/culturas/civilizações que apenas nos deixaram suas obras arquitetônicas justamente pela falta de cuidado que tiveram com seus recursos naturais e simplesmente desapareceram. Isso aconteceu e continuará acontecendo.

A maior parte de nossa classe política eu entendo como o que há de pior na espécie humana. A maioria dos nossos representantes eleitos pelas urnas eletrônicas apresenta claros sinais de sociopatia. Colocados para decidirem assuntos estratégicos para a vida da nação, muitos desses delinquentes de foro privilegiado, que inclusive vêm sendo investigados e ou processados pelo Ministério Público Federal, estão no Congresso Nacional ou nas demais câmaras de representação dos estados e municípios para resolverem seus problemas pessoais e prestarem serviços aos grandes interesses econômicos. Poucos são os representantes eleitos que estão trabalhando pelo interesse da sociedade, pouquíssimos, e esses têm uma capacidade limitada de agir diante da maioria que representa, repito, o que há de pior na espécie humana.

Pior mesmo é que essas pessoas de caráter distorcido são eleitas pela sociedade, que parece também precisar urgentemente de tratamento psiquiátrico por reeleger eleição após eleição bandidos e bandidas mais do que conhecidas na vida pública brasileira. Enfim, as urnas são soberanas até que provem o contrário.

O senhor tem alguma expectativa de que esse cenário mude no Brasil? Qual a sua previsão para o futuro das águas no Rio, pelo menos?

Não. Minha previsão é o apodrecimento progressivo até todos os rios serem transformados em valões de esgoto irrecuperáveis, fruto do crescimento desordenado. Isso não passa como uma das prioridades dos municípios, sejam eles ricos ou pobres. O que rende mais votos? Deixar correr frouxo o crescimento de favelas ou ordenar o uso do solo e implementar políticas habitacionais permanentes e eficientes? A resposta é encontrada apenas olhando o Google Earth! Simples.

Destaco que no município do Rio de Janeiro esta situação de apodrecimento de todas as bacias hidrográficas, convertidas em valões de lixo e esgoto, já é uma realidade. É uma completa zona, onde o que interessa é arrecadar – seja por meio de IPTU ou por meio de contas de água e esgoto, sendo que o último (coleta, tratamento e disposição final) quase sempre é precariamente oferecido ou inexistente.

O governo do estado do Rio de Janeiro afirma que o saneamento na área da Baía de Guanabara passou de 12% em 2005 para 50% atualmente. É verdade essa informação?

O que eu posso lhe afirmar baseado nos quase vinte anos de sobrevoo é que 75% das margens da Baía de Guanabara estão degradadas pelo aporte generalizado de esgoto e lixo e demais resíduos. A bacia hidrográfica, em quase sua totalidade, é uma grande vala morta de esgoto e lixo. Quanto à superfície da Baía de Guanabara, removendo a área do canal central onde ocorrem as trocas entre a baía e o mar e o seu fundo onde está situada a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim, o resto é degradação pura, onde estimo que 70% da superfícíe da Baía esteja de alguma forma contaminada ou degradada.

Como de praxe, minhas estimativas geralmente são diametralmente opostas quando comparadas ao mundo cor de rosa de nossas autoridades, que parecem viver numa outra dimensão, onde os governos de fato funcionam em favor da sociedade e a sociedade de fato obriga os governos a trabalharem a favor da qualidade de vida e qualidade ambiental da nação. Enfim, eu vivo no inferno ou no purgatório e a maioria de nossos políticos no paraíso.

A promessa do governo do RJ era de que 80% da Baía seria despoluída para os Jogos. Quais as consequências por não ter cumprido essa promessa? Alguém responderá por isso?

Nenhuma consequência. Ninguém responderá por nada, pois o lema no Brasil, principalmente no poder público onde quase todos têm o rabo preso com os outros é: se deu merda não é comigo, isso valendo do faxineiro ao presidente, seja interino ou não. Simplesmente ninguém será responsabilizado por absolutamente nada e os criminosos responsáveis por esse fiasco serão reeleitos e a culpa recairá sobre a tal crise, já que esta não poderá se defender. A sociedade, que no final paga toda a festa, continuará batendo palma e fazendo seu papel histórico de corna mansa para a felicidade da nação.

O Rio tem condições de promover os esportes aquáticos? Os atletas correm riscos?

Não tem condições. Claro que correm riscos, e não apenas os atletas. Constate os resultados das avaliações de água e areia feitas no Brasil e no exterior! Eu mesmo sou vacinado contra hepatite A e evito inúmeros locais quando posso.

A responsabilidade por comprometer as nossas águas é mais do governo ou da população? Qual descaso é mais definitivo nessa questão? 

De ambos. Quem elege isso que aí temos nos cargos de comando é a população. Portanto, enquanto elegermos o que há de pior, continuaremos colhendo rios, lagoas, praias, baías e tudo mais contaminado sem data para recuperação.

A Olimpíada trouxe algum avanço para o Rio nesse aspecto?

Não, do ponto de vista ambiental foi um fiasco mundial, reflexo de tudo isso que falamos. Três fatores contribuíram para isso:

1-Políticos pensando no que lhes daria mais votos e recursos

2-Sociedade apática diante dos desmandos ambientais

3-Cultura carnavalesca, do show e da falta de conteúdo

O resultado só poderia dar no que deu: nada para o ambiente, lagoas podres, rios podres, baías podres. Afinal, elas votam ou pagam impostos? Não, portanto são descartáveis!


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