Em 15 de julho de 1945, no Estádio do Pacaembu, diante de 130 mil pessoas, o poeta e senador chileno Pablo Neruda leu uma longa poesia a Luís Carlos Prestes. Recém-libertado da prisão, depois de quase 10 anos de cárcere, Prestes era uma lenda no movimento comunista, “encarnação viva dos heróis antigos”, nas palavras do poeta chileno. Depois do comício, os dois se encontraram na casa de um correligionário. Neruda deixou registradas suas impressões, com um aparente toque de ironia, sobre este primeiro encontro: “Dentro de sua reserva, foi muito cordial comigo. Creio que me dispensou este tratamento carinhoso que, nós poetas, frequentemente recebemos, uma condescendência entre terna e evasiva, muito parecida com aquela que os adultos adotam ao falar com uma criança”.
Depois deste breve encontro mais protocolar, combinaram um almoço para terça-feira da semana seguinte. Entretanto, a diferença entre os nomes dos dias da semana em espanhol e português, uma idiossincrasia linguística que separa radicalmente os hispânicos dos luso-falantes, impediu este encontro histórico. Neruda, por causa da ilógica falta da “Primeira-Feira”, confundiu o dia agendado com a quarta-feira, e faltou ao almoço. “Eu me enredo nestas ‘feiras’, sem saber de que dia se trata (…) eu pude aprender tudo em minha vida, menos os nomes dos dias da semana em português”.
O fato é que Neruda passou o dia na praia, “com uma bela amiga brasileira”, e deixou Prestes esperando com a mesa posta, incluindo um vinho de alta qualidade para agradar o gosto refinado do poeta. O leitor mais matreiro já deve estar desconfiado da desculpa linguística para justificar o desencontro. Quem sabe, Neruda simplesmente tenha se esquecido do compromisso com el capitan del pueblo, embriagado pela beleza de sua amiga e pelo bucolismo sensual da Ipanema dos anos 1940, e não ousou confessá-lo em suas memórias. Quem sabe, Prestes não tenha se abalado tanto com o “bolo”, pois havia tarefas partidárias mais urgentes a cumprir.
Os caminhos destes dois homens até aquele desencontro de julho de 1945, no meio da Era dos Extremos, foram bem diversos, mas ao mesmo tempo semelhantes. Neruda, poeta, diplomata. Prestes, militar, engenheiro. Neruda, amante e dionisíaco. Prestes, casto e apolíneo. Neruda, filho de José del Carmen, ferroviário forjado nas intempéries da Araucania. Prestes, filho de dona Leocádia, “anjo de pedra” esculpido pela viuvez e pela crueldade das ditaduras. Neruda, que conheceu o mundo como diplomata. Prestes, que conheceu o mundo como soldado. Neruda, dos salões, saraus e teatros pelo mundo afora. Prestes, dos acampamentos, reuniões de comando e prisões pelo Brasil adentro. Ambos, filhos do sangrento e maravilhoso século XX, das guerras, da grande revolução de 1917. Ambos, projetando um mundo ideal que nunca chegaria.
Como teria sido o encontro a dois destas duas lendas do comunismo sul-americano e mundial? O encontro do século ou uma conversa trivial? Conversariam sobre política, sobre o Partido? Sobre mulheres, sobre viagens? Diante de tantas dúvidas e lacunas, só nos resta a imaginação histórica, artigo raro entre os historiadores atuais, incluindo eu mesmo.
Teriam muito a conversar sobre as esperanças do futuro e as agruras do passado? Ou fariam pausas e silêncios pelos mortos? Prestes choraria a morte de Olga Benário, confirmada alguns dias antes do almoço desencontrado? Neruda declamaria novamente o poema para Dona Leocádia, lido no seu funeral no México? Beberiam o vinho até ficarem bêbados e gargalharem, ou, como na sequência clássica do filme de Wajda, Prestes-Robespierre apenas tocaria os lábios levemente na taça repleta, enquanto Neruda-Danton sorveria o vinho todo de uma só vez?
Poderiam rememorar a vitória épica do Exército Vermelho sobre os nazistas, poderiam saudar Stalin, “o guia genial dos povos”, poderiam falar mal de Trotsky ou até falar bem de Vargas. Prestes poderia explicar porque o ditador verdugo e protofascista de ontem tinha virado o Pai dos Pobres e amigo dos comunistas de hoje. Poderiam, mais provavelmente, discutir a conjuntura política dos seus países e vislumbrar como seria o futuro paraíso socialista nas Américas. Socialismo de carências ou de farturas? Socialismo de reuniões políticas intermináveis ou de saraus literários imprevisíveis? Socialismo de soldados, de poetas ou de soldados-poetas?
Nunca saberemos.
Mas é um exercício fascinante, ao menos para os apaixonados pela história, imaginar todas as possibilidades e impossibilidades deste encontro-desencontro privado de duas personas públicas, grandes personagens do século XX. Manteriam seus protocolos e máscaras? Nasceria uma grande e improvável amizade, para além do Partido, ou uma profunda antipatia, apesar do Partido?
Em grande parte, o encontro que não aconteceu representa o desencontro de dois tipos de comunismos e comunistas, de duas utopias em uma só ideologia, imersa em suas contradições como todas as coisas do mundo. Mas também representa a indignação compartilhada por dois homens pelas misérias de nuestra América que encontraram no comunismo uma forma de expressão.
Ambos morreram com o século XX. Neruda, dias depois do colapso da última utopia americana, a experiência socialista da Unidade Popular chilena. Prestes, meses depois da icônica queda do muro de Berlim.
De todo modo, se por algum milagre, ambos sobrevivessem, chegassem lúcidos ao século XXI, e pudessem finalmente almoçar a dois com décadas de atraso, acho que teriam pouco assunto para conversar sobre este mundo sem utopias em que vivemos.
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