Bendita Parceria

O repórter Ricardo Carvalho e Dom Paulo Evaristo Arns. Foto: Irmã Trerezinha
O repórter Ricardo Carvalho e Dom Paulo Evaristo Arns. Foto: Irmã Trerezinha

Ricardo Carvalho é expansivo, brincalhão e adora um bate-papo, daqueles bem informais. Ainda assim, uma de suas (várias) ex-mulheres ficou fula da vida pelo fato de o marido exercer o ofício de repórter, mesmo quando está de folga e em descompromissadas reuniões sociais. Não havia jeito. Entre os canapés e rapapés de um auê, Ricardo pressentia uma possível pauta – assunto capaz de render reportagem, no jargão jornalístico – e passava a encher de perguntas algum conviva (que estava mais interessado na fervura do rega-bofe e na temperatura da cerveja). Eis um dos motes do Ricardo: “Repórter tem de ir à luta todos os dias”. Outro: “Repórteres sempre conseguem ler papéis depositados sobre mesas, mesmo de cabeça para baixo”.

O Brasil ainda estava de cabeça para baixo quando Ricardo, então jornalista iniciante, assinou sua primeira matéria na Folha de S. Paulo. Era o ano de 1977, aquele mesmo em que Ernesto Geisel, entre outros despautérios, decretou o recesso do Congresso Nacional, degradou o Senado com os “senadores biônicos” (indicados por ele) e impôs eleições indiretas para governador (uma maneira mais cínica de nomear paus-mandados). Embora falasse em “abertura” e “diálogo”, o general não estava disposto a tirar os óculos escuros e nem permitir o trabalho de jornalistas fuçadores. Menos ainda o de um repórter, como Ricardo Carvalho, interessado em um tema tabu: Direitos Humanos. Para complicar, a Folha passara a ser acompanhada com atenção pelos militares, ao deixar de ser um jornal sem relevância política. Já então sob o astuto comando de Cláudio Abramo, começava a testar, com passos bem medidos, mas tenazes, a tal da “abertura”.

É justamente desse período dos últimos anos do governo Geisel (prorrogados pelo próprio) e dos iniciais do inesquecível general João Baptista Figueiredo, que Ricardo trata em O Cardeal e o Repórter – Histórias que Fizeram História. Além de decifrar textos dispostos de ponta-cabeça (como dizem os paulistas) e manter-se aceso, um repórter de bom siso precisa, claro, de uma fonte confiável e muito bem informada. Se possível, exclusiva.

Essa fonte foi o então cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, daí o titulo e a homenagem do livro. Embora atuante e destemido como poucos na defesa dos Direitos Humanos, o cardeal era – e ainda é – um homem de absoluta discrição. Portanto, uma fonte improvável. Mas não para Ricardo. O grandalhão de barba desgrenhada e surrada bolsa a tiracolo – figurino das esquerdas na época – soube ganhar a confiança do cardeal e descobrir-lhe o talento de pauteiro e repórter. “Eu estava certíssimo”, lembra. E acrescenta, com um riso nada reservado: “Tanto que Dom Paulo tornou-se, mais tarde, sócio com carteirinha e tudo da Associação Brasileira de Imprensa”.

A contribuição do cardeal foi decisiva em vários furos de reportagem, embora, Ricardo tenha posto a cara barbuda e a coragem para correr atrás das histórias. Inclua-se nessa conta a publicação do documento Exigências Cristãs de Uma Ordem Política, que revelava, em 1977, a decisão dos bispos católicos latino-americanos em tomar posição incisiva contra os regimes autoritários no continente. Ponha-se, também, a primeira lista de desaparecidos políticos registrada na grande imprensa. E, ainda, um dos grandes furos da época, relatado no livro com suspense e emoção: a confirmação de que os governos do Cone Sul sequestravam crianças, filhas de adversários dos regimes militares.

Ao narrar as peripécias daquela reportagem, Ricardo não tem pruridos em confessar o medo que sentiu ao se descobrir seguido pelas ruas de Montevidéu. Na volta ao Brasil, para não dar sopa ao inimigo pediu para voar na cabine de pilotagem. Bem acolhido a bordo, descreveu sua jornada com tal desenvoltura que o comandante do avião deu-se ao direito de traçar vários uísques para acompanhar o relato. Bendito piloto automático, engenhoca providencial.

Vale lembrar que não foi preciso recorrer a Dom Paulo para destrinchar outras histórias, no período em que, além da Folha, Ricardo trabalhou, sucessivamente na IstoÉ, no efêmero Jornal da República, na TV Cultura e na Rede Globo. Buscando aqui e ali, ele encontrou a vala onde estava enterrado o primeiro militante desaparecido, enfim localizado. Também publicou o caso do único preso político relegado a um manicômio – que, graças a seus esforços, foi colocado em liberdade. Assim como acreditava e expôs em livros o saudoso José Roberto de Alencar, outro repórter da mesma estatura – nos dois sentidos da palavra -, Ricardo atribui alguns dos furos a um fator aleatório: “Repórter tem de ter sorte”.

Com efeito, vez por outra ela despontou. Ricardo havia viajado a Assunção, para cobrir para a Globo uma pauta de menor importância. Pois não é que chegou no dia em que foi assassinado o ex-ditador da Nicarágua, Anastasio Somoza, que estava asilado no Paraguai? Ricardo era o único repórter internacional em Assunção. Ajudado pela manha do cinegrafista Marco Antonio Gonçalves, o Marcão, desviou-se da vigilância dos seguranças e, em meio ao velório, entrevistou a viúva de Somoza.

Na Globo, Ricardo esteve à frente de programas de reportagem no decorrer de 20 anos, até ocorrer um arranca-rabo com o chefão Armando Nogueira. Aí, pediu o boné e montou uma produtora. Em 2008, já se livrara da barba e da bolsa, mas mantinha as fotos, recortes e anotações das matérias sobre Direitos Humanos, publicadas décadas antes. Mais uma vez, consultou Dom Paulo e resolveu escrever sobre os bastidores de cada reportagem: “Quis deixar um legado, em especial para os novos jornalistas, das circunstâncias em que se faziam reportagens na época”.

O livro é uma exceção entre outros relatos do período de exceção: não contém as expressões “porões da ditadura”, “anos de chumbo” e, tampouco, “período de exceção”. Ao contrário, nutre-se de linguagem ao mesmo tempo bem urdida e coloquial.

É bem verdade que viviam os tempos de anistia e da retomada do movimento estudantil e sindical. Época de esperança renovada. Também é fato que Ricardo, esquivo em aderir formalmente a partidos e organizações políticas, jamais foi preso e, no máximo, tomou uns cascudos em uma passeata. Mas não é menos verdade que o pirulão tinha cada andança vigiada e dificultada pelos “agentes da repressão” – outra expressão descartada pelo autor. Escavar grandes reportagens era mesmo uma proeza e tanto, como bem sabe o repórter Dom Paulo – hoje, aos 88 anos, bem de saúde, e, como bom franciscano, recluso em aposentos modestos (quatro cômodos) em Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

Outra façanha de Ricardo: publicar um livro sobre os “tempos bicudos” – ele também não usa essa expressão – que, embora aborde o assunto com a devida seriedade, pode ser lido como se fosse um bate-papo. Bem informal. Tal como o autor.


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