A frase de Albert Camus me veio à cabeça quando li a notícia dando conta do aumento do número de brasileiras ricas que vão a Miami para dar à luz filhos, óbvio, em busca da cidadania norte-americana: “O Homem é o único animal que não quer ser o que é”.
A princípio, pensei, nada mais covarde. A tendência é julgar contaminado pelo ambiente político, como essas mães – vítimas da ignorância, intoxicadas por uma mentalidade individualista e seduzidas pela ilusão de que seus filhos, um dia, serão um deles. A leitura do livro “A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa manipular pela elite”, do sociólogo Jessé de Souza, me fez perceber a profundidade da questão. Lembrou-me também outra frase, desta vez de Paulo Freire: “Quando a educação não é emancipadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.
Ao revisar toda a nossa sociologia, Jessé nos ajuda a entender melhor a atitude desses brasileiros que querem ser norte-americanos. O livro atribui responsabilidades sobre essa idealização dos Estados Unidos que parece ter chegado ao ápice com a atual crise política brasileira. “Lá fora” sempre foi melhor no senso comum tupiniquim. Há algumas décadas, a expressão “Deu no New York Times” era citada entre os jornalistas brasileiros para dar prestígio e credibilidade a algum fato. Com o tempo, o “Deu no NYT”, de tão ridículo, acabou na seção de humor. O exemplo mostra bem quão colonizados sempre fomos na imprensa brasileira.
Nossos jornais sempre ajudaram a propagar a ideia de que os Estados Unidos são a encarnação da sociedade perfeita, um modelo absoluto. Pior. Um suposto estoque cultural, adquirido de forma naturalista, fez o país assim e isso teria garantido, na hierarquia das nações, o topo para as sociedades do Atlântico Norte. Esse grupo que hoje se convencionou definir – na mesma imprensa anglo-saxã – de “Ocidente”. Restaria aos brasileiros, seres “naturalmente afetivos”, “personalistas”, “particularistas e corruptos”, qualidades reunidas no conceito sociológico de “homem cordial”, almejar, talvez eternamente, atingir o primeiro mundo. Ser um deles. Aquela ilusão bem explorada por José de Souza Martins em sua sociologia do homem comum.
Quem teria criado esse imaginário? Quais as consequências sociais de o Brasil acreditar piamente nessa tese? A quem ela serviu? Ao buscar essas respostas, Jessé Souza dá continuidade ao seu excelente trabalho sobre classes sociais, no qual enterrou a frágil tese da “nova classe média”. Seus livros anteriores, sobre a “ralé” e os “batalhadores” mostram como liberais e marxistas estavam apegados a critérios economicistas insuficientes para analisar classe social.
Os dois campos deixavam de lado, na visão de Jessé, um elemento fundamental: a herança imaterial. Essa é transferida quase silenciosamente no seio das famílias, de geração a geração e, portanto, descolada de renda e da organização do sistema de produção. Assim Jessé exerceu, pode-se definir, uma sociologia disruptiva. Talvez como Thomas Piketty o fez na Economia Suscitou muitas críticas. Mas seus críticos se mostraram sem fôlego intelectual para se estabelecer – e serem levados em conta – no debate travado no espaço público. Tal como os de Piketty. O motivo? A realidade sempre grita mais alto do que a ideologia ou a vaidade acadêmica.
Essa continuidade do trabalho é justificada porque, se a classe social é definida, em grande parte, pela herança imaterial (cultural e simbólica) é preciso mapeá-la. Como diria a Fedra de Racine: “Que herança deixarei aos meus filhos?” No caso, Jessé foi buscar qual herança sociológica herdamos, nós, brasileiros. E fez uma descoberta incômoda. Uma sociologia conservadora, colonizada e movida pelo que ele define como “racismo cultural” estabeleceu-se no Brasil a serviço do liberalismo e dividiu o mundo entre nós e eles. Nós somos o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, inspirado por Gilberto Freyre, e eles são os norte-americanos – “racionais”, “impessoais”, “universais” e, logo, “incorruptíveis”. Nós somos as sociedades periféricas, eles são os países centrais. No Brasil, essa “sociologia racista culturalista” teria colaborado para neutralizar o conflito entre classes ricas ou médias e as classes populares.
A educação brasileira, na visão de Jessé, incorporou essa tese sociológica a partir de uma leitura errada ou conveniente do patrimonialismo de Max Weber. Sobretudo quanto à corrupção, o cordialismo buarquiano ajudou a nos convencer de que o Estado brasileiro é o culpado e o mercado é sempre inocente.
Sim, caros leitores, Jessé está dizendo que o argumento usado por aqueles “coxinhas” que atacaram Chico Buarque na porta de um restaurante no Rio foi criado pelo próprio pai do nosso grande artista. “O fato de o homem Sérgio Buarque ter sido uma figura digna de admiração não deve impedir a crítica, com bons argumentos, de suas ideias”, escreve Jessé. Freyre e Buarque, ataca ele, teriam escancarado o imaginário brasileiro (com a imprensa ajudando a forjar a opinião pública) para a invasão neoliberal com a culpabilização exclusiva do Estado por todo tipo de “malfeitos”.
Embora Jessé tenha despendido um esforço para adotar uma linguagem menos acadêmica, chegou apenas perto deste objetivo. De qualquer forma, a aula de sociologia nunca mais será a mesma depois desse livro. Assim como o trabalho pode ajudar àqueles que sempre apostam na solução das mães de Miami, pode fazer refletir sobre a noção de “sociedade superior” e “indivíduo superior” que nos faz aceitar o papel de “subgente”. Ou mesmo “caipira”, como certa vez nos definiu Fernando Henrique Cardoso, outro condenado por Jessé – embora o guru do ex-presidente, Florestan Fernandes, saia ileso e a sociologia dele mereça um tratamento singular do autor.
O Brasil, por culpa de uma “má sociologia” e uma fragmentação do conhecimento, intoxicou gerações em vez de educá-las para a emancipação, para assumirem o protagonismo de seus destinos, alerta Jessé. Ele nos diz que “lá fora” também chove. Aliás a impessoalidade da sociedade norte-americana é facilmente perceptível. Na política e em Holywwod. Lembro da frase de Fernanda Montenegro a uma repórter quando disputou o Oscar: “Não querida, não vou ganhar, eu sei. Eu não pertenço a isso aqui. Eu não sou um deles”.
*Jorge Félix é jornalista e professor convidado da USP, da PUC-SP e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
A Tolice da Inteligência Brasileira – ou Como o País se Deixa Manipular pela Elite
Jessé Souza
Editora Leya
272 páginas
R$ 39,90
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