A saída é virar norte-americano. Quem disse essa tolice?

A frase de Albert Camus me veio à cabeça quando li a notícia dando conta do aumento do número de brasileiras ricas que vão a Miami para dar à luz filhos, óbvio, em busca da cidadania norte-americana: “O Homem é o único animal que não quer ser o que é”.

A princípio, pensei, nada mais covarde. A tendência é julgar contaminado pelo ambiente político, como essas mães – vítimas da ignorância, intoxicadas por uma mentalidade individualista e seduzidas pela ilusão de que seus filhos, um dia, serão um deles. A leitura do livro “A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa manipular pela elite”, do sociólogo Jessé de Souza, me fez perceber a profundidade da questão. Lembrou-me também outra frase, desta vez de Paulo Freire: “Quando a educação não é emancipadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Ao revisar toda a nossa sociologia, Jessé nos ajuda a entender melhor a atitude desses brasileiros que querem ser norte-americanos. O livro atribui responsabilidades sobre essa idealização dos Estados Unidos que parece ter chegado ao ápice com a atual crise política brasileira. “Lá fora” sempre foi melhor no senso comum tupiniquim. Há algumas décadas, a expressão “Deu no New York Times” era citada entre os jornalistas brasileiros para dar prestígio e credibilidade a algum fato. Com o tempo, o “Deu no NYT”, de tão ridículo, acabou na seção de humor. O exemplo mostra bem quão colonizados sempre fomos na imprensa brasileira.

O sociólogo Jessé de Souza. Foto: Reprodução/YouTube
O sociólogo Jessé Souza. Foto: Reprodução/YouTube

Nossos jornais sempre ajudaram a propagar a ideia de que os Estados Unidos são a encarnação da sociedade perfeita, um modelo absoluto. Pior. Um suposto estoque cultural, adquirido de forma naturalista, fez o país assim e isso teria garantido, na hierarquia das nações, o topo para as sociedades do Atlântico Norte. Esse grupo que hoje se convencionou definir – na mesma imprensa anglo-saxã – de “Ocidente”. Restaria aos brasileiros, seres “naturalmente afetivos”, “personalistas”, “particularistas e corruptos”, qualidades reunidas no conceito sociológico de “homem cordial”, almejar, talvez eternamente, atingir o primeiro mundo. Ser um deles. Aquela ilusão bem explorada por José de Souza Martins em sua sociologia do homem comum.   

Quem teria criado esse imaginário? Quais as consequências sociais de o Brasil acreditar piamente nessa tese? A quem ela serviu? Ao buscar essas respostas, Jessé Souza dá continuidade ao seu excelente trabalho sobre classes sociais, no qual enterrou a frágil tese da “nova classe média”.  Seus livros anteriores, sobre a “ralé” e os “batalhadores” mostram como liberais e marxistas estavam apegados a critérios economicistas insuficientes para analisar classe social.  

Os dois campos deixavam de lado, na visão de Jessé, um elemento fundamental: a herança imaterial. Essa é transferida quase silenciosamente no seio das famílias, de geração a geração e, portanto, descolada de renda e da organização do sistema de produção. Assim Jessé exerceu, pode-se definir, uma sociologia disruptiva. Talvez como Thomas Piketty o fez na Economia Suscitou muitas críticas. Mas seus críticos se mostraram sem fôlego intelectual para se estabelecer – e serem levados em conta – no debate travado no espaço público. Tal como os de Piketty. O motivo? A realidade sempre grita mais alto do que a ideologia ou a vaidade acadêmica.

Essa continuidade do trabalho é justificada porque, se a classe social é definida, em grande parte, pela herança imaterial (cultural e simbólica) é preciso mapeá-la. Como diria a Fedra de Racine: “Que herança deixarei aos meus filhos?” No caso, Jessé foi buscar qual herança sociológica herdamos, nós, brasileiros. E fez uma descoberta incômoda. Uma sociologia conservadora, colonizada e movida pelo que ele define como “racismo cultural” estabeleceu-se no Brasil a serviço do liberalismo e dividiu o mundo entre nós e eles. Nós somos o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, inspirado por Gilberto Freyre, e eles são os norte-americanos – “racionais”, “impessoais”, “universais” e, logo, “incorruptíveis”. Nós somos as sociedades periféricas, eles são os países centrais. No Brasil, essa “sociologia racista culturalista” teria colaborado para neutralizar o conflito entre classes ricas ou médias e as classes populares.

A educação brasileira, na visão de Jessé, incorporou essa tese sociológica a partir de uma leitura errada ou conveniente do patrimonialismo de Max Weber. Sobretudo quanto à corrupção, o cordialismo buarquiano ajudou a nos convencer de que o Estado brasileiro é o culpado e o mercado é sempre inocente.

Sim, caros leitores, Jessé está dizendo que o argumento usado por aqueles “coxinhas” que atacaram Chico Buarque na porta de um restaurante no Rio foi criado pelo próprio pai do nosso grande artista. “O fato de o homem Sérgio Buarque ter sido uma figura digna de admiração não deve impedir a crítica, com bons argumentos, de suas ideias”, escreve Jessé. Freyre e Buarque, ataca ele, teriam escancarado o imaginário brasileiro (com a imprensa ajudando a forjar a opinião pública) para a invasão neoliberal com a culpabilização exclusiva do Estado por todo tipo de “malfeitos”.

Embora Jessé tenha despendido um esforço para adotar uma linguagem menos acadêmica, chegou apenas perto deste objetivo. De qualquer forma, a aula de sociologia nunca mais será a mesma depois desse livro. Assim como o trabalho pode ajudar àqueles que sempre apostam na solução das mães de Miami, pode fazer refletir sobre a noção de “sociedade superior” e “indivíduo superior” que nos faz aceitar o papel de “subgente”. Ou mesmo “caipira”, como certa vez nos definiu Fernando Henrique Cardoso, outro condenado por Jessé – embora o guru do ex-presidente, Florestan Fernandes, saia ileso e a sociologia dele mereça um tratamento singular do autor.  

O Brasil, por culpa de uma “má sociologia” e uma fragmentação do conhecimento, intoxicou gerações em vez de educá-las para a emancipação, para assumirem o protagonismo de seus destinos, alerta Jessé. Ele nos diz que “lá fora” também chove. Aliás a impessoalidade da sociedade norte-americana é facilmente perceptível. Na política e em Holywwod. Lembro da frase de Fernanda Montenegro a uma repórter quando disputou o Oscar: “Não querida, não vou ganhar, eu sei. Eu não pertenço a isso aqui. Eu não sou um deles”.

*Jorge Félix é jornalista e professor convidado da USP,  da PUC-SP e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

A Tolice da Inteligência Brasileira – ou Como o País se Deixa Manipular pela Elite
Jessé Souza
Editora Leya
272 páginas
R$ 39,90  


Comments

3 respostas para “A saída é virar norte-americano. Quem disse essa tolice?”

  1. Avatar de Rosa Maria Lopes
    Rosa Maria Lopes

    Devemos aplaudir reflexões que ajudam a entender o atraso da pesquisa acadêmica e a brilhante análise sobre a herança imaterial abre uma imensa janela para novos horizontes. Quem sabe assim o espaço público brasileiro possa sair do domínio do complexo de vira-latas

  2. Avatar de Roberto Rossini
    Roberto Rossini

    Otimo texto, mas existe sim quem busque outros lugares pra se viver por outros motivos, aqui vcs focam em so um determinado grupo alienado, depois poderiam aprofundar mais.

  3. O sonho do oprimido é ser opressor. Não o contrário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.