A análise criminal contemporânea, elaborada a partir de um crime real, tem como um de seus objetivos estabelecer o perfil do criminoso em ação para melhorar a eficácia das investigações. É com ela que se desvenda se é um crime inserido em série, o tipo de criminoso e a maneira de como “conversar” com ele, além da elaboração de técnicas investigativas (campanas ou busca de provas) e do planejamento de interrogatórios para diminuir custos e tempo de investigação, entre tantas possibilidades.
Infelizmente, porém, a popularização da técnica, o mau uso e a banalização que a imprensa faz dela, transformaram-na em instrumento de construção de estereótipos, ajudando na exclusão e na criminalização de classes sociais menos favorecidas. É comum ouvir, em programas vespertinos de TV, o suposto “perfil” de suspeitos ainda não condenados, descritos com características “psicológicas” (psicopata, frio, olhar desse ou daquele tipo, viciado em drogas, etc.) e de atitudes (modo de vestir, por exemplo), como vem acontecendo nos episódios do chamado “rolezinho”. Crenças, modos e costumes considerados politicamente incorretos estão estampados nos jornais como receitas para identificar um criminoso, a título de uma imaginária prevenção de crimes ou suposta redução da criminalidade.
Não demora para um crime ser considerado “religioso”, se ele acontecer perto de algum local de cultos afro-brasileiros. Adeptos logo são eleitos suspeitos, por praticarem “magia negra”. Nexo causal entre religião e crime pode existir, principalmente nos casos de crime em série, mas são raros e englobam qualquer religião (ocidental, oriental ou africana). O simples fato de cultuar essa ou aquela religião não transforma o fiel em criminoso, mas os estereótipos estão criados e se multiplicando nessa era em que tudo se torna viral pelas redes sociais.
Segundo estudo sobre tatuagens no sistema carcerário, feito pela Polícia Civil e Criminalística, até Nossa Senhora Aparecida é alvo de estereótipos. No entendimento desses peritos, quem usa a figura da santa é bandido no “dicionário criminoso”. Para eles, a santa tatuada em tamanho pequeno nas costas indica que o acusado praticou latrocínio (roubo seguido de morte). Caso a imagem seja grande e centralizada, pode significar um estuprador ou que o sujeito teria sido violado no cárcere. Tatuada nas mãos, braços ou coxas, Nossa Senhora, segundo esse estudo, indicaria um homicida. Mas se a tatuagem aparecer no centro do peito significa desejo de proteção, normalmente usado por detentos com penas longas ou matadores de aluguel. Devotos e desavisados precisam ter cuidado porque, se tiverem passagem pela polícia, poderão sofrer todo o tipo de preconceito.
Essa situação não acontece só no Brasil. A história da perseguição dos adeptos ao culto da Santa Morte mostra que, em alguns lugares, Igreja e Estado ainda vivem em tempos de Inquisição. Santa Morte, venerada em várias partes da América Latina, é a personificação da morte em si, e não de um ser humano morto. Suas raízes remetem aos maias e astecas, em referência à deusa Mictecacíhuatl, a povos indígenas, ao catolicismo medieval ocidental na figura do Ceifador (Grim Reaper) e outras simbologias relacionadas à morte.
Ela é chamada por vários apelidos carinhosos, como Magrinha (La Flaquita), Ossuda (La Huessuda), Branquinha, Madrinha, Poderosa ou Menina Bonita. Sua figura é representada por uma caveira que veste um manto com capuz, que varia de cor. Carrega uma foice para ceifar as almas, um relógio de areia, simbolizando a passagem do tempo e a brevidade da vida, e o mundo em suas mãos. Algumas vezes também aparece segurando a balança da Justiça.
Citada oficialmente pela primeira vez em registros históricos da Inquisição, no ano de 1797, foi venerada de forma clandestina e sincretizada até 2001, quando, no México, a mãe de um condenado (Dona Queta) atribuiu a ela o milagre da soltura do filho em tempo recorde, construindo um santuário em seu nome, que recebe peregrinos de todas as partes do país.
Santa Morte ficou conhecida por nunca exercer o papel de juíza, e sim de advogada divina dos fiéis. Não importa quanto errados eles estejam, ela os ajuda, protege e consola. Movimenta um mercado milionário de venda de velas votivas e parafernália religiosa, do Chile ao Canadá. Tem devotos de todas as classes sociais, mas, por conta de sua associação ao crime organizado e ao tráfico de drogas, além da condenação como blasfêmia pelas igrejas Católica e Protestante, algumas pessoas ainda mantêm sua devoção em sigilo.
Ela é cultuada em diversas cores, cada uma com um objetivo: vermelho para o amor; dourado, prosperidade; verde, justiça; branca, proteção e gratidão; e preta, para a defesa do fiel contra os inimigos. E é nessa cor preta que ela fica relacionada a bruxaria e magia negra.
Nos Estados Unidos, o FBI já fez uma compilação de extensa bibliografia sobre esse culto e oferece ajuda para análise de locais de crime onde são encontrados altares ou objetos relacionados à santa(*). Para assistência federal especializada, o FBI pode proporcionar formação em gestão de investigações de morte e espiritualidade relacionadas a esse culto.
Robert Almonte, especialista e agente federal que atua em um distrito do Texas, já testemunhou pela promotoria contra réus que cultuam a Santa Morte e são acusados de tráfico de drogas. Ele foi chamado para explicar aos jurados que esse é o “perfil” dos indivíduos que a reverenciam, procurando proteção para não serem pegos pela polícia ao cometerem crimes. As provas de que os acusados cultuavam a Santa Morte ajudaram promotores na condenação, como se fossem provas criminais. Arturo Chávez, presidente do Mexican American Catholic College, chegou a declarar em entrevistas que “pessoas envolvidas nesse culto também são envolvidas em atividades ilegais”.
Três fatores principais fizeram da Santa Morte a caricatura de uma religião de bandidos: ser patrona do poderoso cartel mexicano de drogas Los Zetas e cultuada por inúmeros condenados cumprindo pena, além do crescimento meteórico de sua credibilidade relacionada à proteção de “criminosos” por meio de notícias sensacionalistas. Como consequência, uma verdadeira caça às bruxas teve início em 2009, quando autoridades mexicanas destruíram mais de 30 capelas dedicadas à Santa Morte em Tijuana e Nuevo Laredo, como se essa brutalidade e cerceamento à crença e religião fosse, de alguma forma, diminuir a criminalidade nessas regiões.
Estamos novamente no ponto em que a segregação social e a inquisição religiosa são permitidas em nome de uma suposta prevenção da violência. Como se a violência pudesse ser uma arma contra o crime. Como se pudéssemos prever “personalidades criminosas”. Que Santa Morte nos proteja de conceitos como esses!
*fbilibrary.fbiacademy.edu/bibliographies/santamuertenarcos.pdf
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