“Sem democratizar a ciência não há nem soberania nem democracia”

O médico brasileiro Miguel Nicolelis foi eleito um dos 20 maiores cientistas do mundo na última década pela revista Scientific American. Lidera um grupo de pesquisadores na área de neurociência na Universidade Duke, na Carolina do Norte (Estados Unidos), onde realiza estudo de integração do cérebro humano com máquinas. A ideia dele é que as pessoas que implantarem um braço ou uma perna artificial não precisem reaprender a se movimentar. Para se mexer, bastará pensar. Ele deseja realizar a primeira demonstração com humanos em 2014, dando o pontapé inicial no jogo de abertura da Copa do Mundo que será realizada no Brasil.

Torcedor do Palmeiras, Nicolelis recorre ao futebol para mostrar o caminho que a ciência brasileira deve seguir para se tornar mais competitiva e, quem sabe, virar referência mundial. “No Brasil, a produção científica não drena o potencial humano da sociedade. Ainda é um sistema circunscrito a poucas classes. Quando a ciência passar a ser discutida no botequim, como o futebol, e se transformar em conversa coloquial, aí não vai ter pra ninguém”, diz.

Para ele, os brasileiros ainda têm a tendência de “não acreditar no seu taco”, que identifica como consequência do longo processo de colonização que a nação brasileira sofreu. “Por causa da nossa história, aprendemos a não acreditar que é possível fazer o que os caras fazem lá fora. Cada vez que algum brasileiro faz alguma coisa muito boa na ciência, sempre tem alguém aqui que fala: ‘Mas tem um americano que fez melhor’. Nunca você alcança um patamar de excelência porque sempre tem um gringo que a imprensa brasileira descobre que fez mais que você”, acusa.

É de gente que o Brasil necessita para fazer ciência de alto nível, assegura. “Você não faz inovação tecnológica e científica, não transforma um país sem gente”, diz. E é preciso capacitar essas pessoas, derrubar o mito de que o brasileiro não gosta de ciência. Para comprovar isso, Nicolelis cita o site da Comissão do Futuro da Ciência Brasileira, presidida por ele. Menos de um mês após ser criado e sem nenhum anúncio na grande mídia, com divulgação só pelas redes sociais e pelo boca a boca, já conta com 4 mil brasileiros que participam diariamente de debates sobre os problemas da ciência brasileira e qual a missão futura da ciência na construção de uma sociedade democrática.

O cientista enfatiza: “Quero deixar isso bem claro que, no século 21, ciência & tecnologia não é um debate de intelectual. É questão de soberania nacional, de democracia. Sociedades democráticas que não democratizam a prática da ciência e da tecnologia não vão poder se chamar nem soberanas nem democráticas”.

O cidadão brasileiro, segundo Nicolelis, quando tem oportunidade, participa, como comprova o site da Comissão do Futuro da Ciência Brasileira. “Porque ciência é apaixonante e este é um país que se apaixona por coisas que a ciência gosta de fazer”, ressalta.

Miguel Nicolelis participou do seminário abrindo o painel “O uso democrático da ciência como agente de transformação no Brasil”. E pergunta a si mesmo: como se faz ciência como agente de transformação? “Não tenho a menor ideia, ninguém sabe”, responde. Ele, porém, já escolheu um caminho. Foi para Macaíba, no Rio Grande do Norte, estado com o pior desempenho escolar do País, empatado com Alagoas e um pouco abaixo da Bahia.

Instalou nesse local um projeto espetacular: a Cidade do Cérebro. “Nós tentamos um caminho e esse caminho é levar a ciência para dentro da realidade das crianças e circundar essas crianças com pesquisa de alto nível para que elas possam ter o modelo do cientista e da ciência como algo que gostariam de fazer com tanto desejo e tanta obsessão como jogar bola na rua depois da escola”, diz.

Cita Alberto Santos Dummont como exemplo de um caminho reconhecido: “Ele nunca foi para a escola. E, se tivesse ido, jamais teria voado. A escola teria falado para ele decorar tabuada, porque voar é para os passarinhos. Ele não foi para a escola e voou”.

É isso que Nicolelis quer fazer com as crianças de Macaíba: deixá-las escolher os caminhos pelos quais vão expressar a sua criatividade.

“Nós fomos para um lugar que ninguém queria ir, o Nordeste brasileiro. Criamos a Associação Alberto Santos Dummont e um instituto de pesquisa que é muito diferente da maioria dos institutos que nós conhecemos. Nasceu no meio de lugar nenhum. É o único instituto de neurociência do mundo que, quando olhamos pela janela, vemos vacas pastando. Mas, mais importante que fazer neurociência de alto nível, foi circundar esse instituto com canais transparentes pelos quais as crianças possam sonhar em ser o que elas quiserem”, revela.

Nicolelis criou duas escolas no Rio Grande do Norte e uma na Bahia, que atendem a 1.400 crianças. “Nas nossas escolas, as crianças chegam uma hora antes e, na hora de ir embora, os pais precisam arrancá-las da escola. Ali, elas estão brincando de aprender. E estão aprendendo para poder brincar, porque inovação é brincar, mas em uma escala diferente. É realmente criar coisas como você criava no quintal da sua avó”, diz.

“Essas crianças começaram a se desenvolver e a mudar o perfil das suas próprias escolas. Nós tivemos de trazer os professores da rede pública para o nosso instituto porque os alunos passaram a questionar, a perguntar, a duvidar de tudo. E, se você é um cientista, tudo pode ser questionado”, assinala.

Além dessas escolas, Nicolelis criou o programa Educação Para Toda a Vida, o primeiro programa de educação que começa na barriga da mãe. “Realizamos o pré-natal de 12 mil mulheres por ano na periferia de Natal. A ideia é que essas crianças nasçam com potencial neurobiológico suficiente para exercer o seu direito inalienável de perseguir a sua felicidade intelectual plena, sem que ninguém fale o que elas devem fazer”, diz.

O objetivo do cientista é construir o primeiro parque neurotecnológico do planeta, onde o conhecimento acumulado pelo instituto de pesquisa, combinado com uma série de ações sociais, vai culminar no surgimento do hospital do cérebro e transformar Macaíba na primeira ilha do conhecimento brasileira, “onde se produz conhecimento de ponta desde a gestação”.

Ser criança a vida inteira, exercitar a sua criatividade, buscar seus sonhos impossíveis, tentar mudar o mundo. Esse é o programa de formação dos profissionais dessa área. “Os grandes cientistas que eu conheço querem ver algo que ninguém nunca viu, criar algo que ninguém jamais criou. Enfim, mudar o mundo”, diz. E é exatamente isso que Miguel Nicolelis está realizando em Macaíba.


Comentários

2 respostas para ““Sem democratizar a ciência não há nem soberania nem democracia””

  1. Avatar de Geóvana Novaes
    Geóvana Novaes

    Admirável o trabalho desse cientista brasileiro !
    Gostaria de ter a sua biografia completa para uso em discussão sobre o tema da Neurologia.

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