“Sociedade brasileira é permissiva e não quer cumprir a lei”, diz Aldo Fornazieri

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A mesma sociedade que parece decidida a punir adolescentes menores de 18 anos em situação de conflito com a lei é “permissiva e não quer cumprir a lei”, além de não incentivar valores como a igualdade, a justiça e a solidariedade. As constatações foram feitas pelo professor e diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Aldo Fornazieri, em entrevista à Brasileiros em nossa série sobre a redução da maioridade penal. 

A partir de uma análise sociológica da questão, Fornazieri explica que uma sociedade que não respeita as regras que são estipuladas para controlar a natureza humana permite que o crime seja uma alternativa, principalmente aos jovens, suscetíveis às vicissitudes da idade. “Normalmente, quando há surtos de violência, aqueles que mais a praticam são os jovens, porque eles têm menos cálculos dos riscos das ações que produzem, por conta de questões hormonais, do espírito de aventura e assim por diante”, explica ele. A seguir, leia trechos da entrevista:

Brasileiros – O debate atual em torno da redução da maioridade penal está embutido num momento em que os lados tendem a se afastar e entrar em conflitos mais delineados. Quem é contra praticamente se digladia com quem é a favor. Por que isso está acontecendo?
Aldo Fornazieri – Entendo que esse clima de sectarismo, de ódio e de polarização é resultado do espírito das eleições presidenciais do ano passado. A partir dali, houve uma divisão da sociedade, primeiro em torno dos dois candidatos que foram ao segundo turno e, depois, isso transbordou para outras temáticas. A questão da maioridade penal entrou nesse hall de sectarização. Aparentemente, quem votou na presidenta Dilma Rousseff é contra a redução e quem votou no Aécio Neves é a favor. Tendo em vista essa polarização política geral do País, parece que temáticas que não deveriam suscitar uma radicalização estão desaguando também neste fenômeno, como a redução.

Se não fosse a campanha, não estaríamos nesse nível de divisão, então?
Acredito que não. O tema, embora seja suscetível de debates acalorados, não seria motivo para uma polarização tão intensa entre contrários e favoráveis se não existisse esse sentimento herdado das eleições presidenciais.

O principal argumento de quem defende a redução da maioridade é que adolescentes menores de 16 anos têm consciência das ações que produzem. De forma contrária, culpa-se a desigualdade social pela existência da criminalidade e aí, nesse caso, só existem adolescentes infratores porque o meio que estes vivem não lhes dá muitas oportunidades. Até que ponto a sociedade tem culpa na formação de menores criminosos?
Nossa sociedade é profundamente injusta. Existe uma grave desigualdade e um preconceito contra negros – a maioria dos infratores é oriunda da juventude negra e pobre das periferias – o que nos dá duas dimensões desse problema: a pobreza e a questão racial. Os afrodescendentes são os mais pobres do País e, consequentemente, são as maiores vítimas. As pesquisas sobre violência no Brasil mostram que, das 56 mil pessoas que morrem no País todo ano por meios violentos, 36 mil são jovens entre 15 e 29 anos e desses, a maioria é jovem pobre e negro. Assim, existe uma sociedade injusta e que exclui. Não dá para negar esse aspecto. Existem outros estudos que mostram jovens entre 15 e 18 anos sofrem uma exclusão escolar, que não têm acesso à conclusão do ensino médio. Estamos falando então que, além de uma exclusão social e étnico-racial, há uma exclusão escolar. Esses componentes mostram, portanto, que a sociedade é culpada em parte pelo fenômeno, claro que com uma parte também cabendo ao Estado. A sociedade produz esse quadro e o Estado precisa lidar com ele. A maior parte da sociedade que quer condenar esses jovens não se dá conta desses problemas: de que muitos desses jovens são vítimas do sistema e que o enquadramento desses adolescentes no sistema penal comum não é a melhor solução. Nos Estados Unidos, a grande maioria dos Estados têm configurações para maioridade aos 18 anos e, os cinco ou seis que preveem idades penais menores estão pensando em mudar, porque já viram que não deu certo.

As pessoas têm a ideia de que, se não diminuir a maioridade, os jovens que cometerem crimes ficarão impunes.
O que é uma grande confusão. Há uma diferença enorme entre maioridade e punidade. O fato de um menor de 18 anos cometer delitos não significa que ele não deve ser punido. O que deveria se discutir é o âmbito do ECA, como foi votado no Senado ontem [os senadores votaram, na quarta-feira passada, 10, projeto que prevê maior tempo de internação para adolescentes infratores que cometerem crimes graves]. Me parece que esse é o caminho mais correto, porque as medidas de punição aos jovens, neste caso, são de natureza socioeducativa, enquanto que reduzir a maioridade, colocando-os na prisão comum, é apenas aumentar a violência. Nossas cadeias são escolas do crime. Todos os jovens maiores de 18 e menores de 29 que vão parar na prisão saem de lá e continuam atuando no crime.

A última pesquisa sobre redução da maioridade penal apontou que 87% das pessoas são a favor da redução da maioridade no Brasil. Há a sensação de insegurança, obviamente, mas possivelmente existem outros dispositivos que fazem as pessoas concordarem com essa medida. É possível encontrá-los?
O motivo principal é a falta de segurança e há uma ilusão difundida pelos políticos que defendem a redução supondo que a proposta vai resolver o problema da segurança pública, o que não é verdade. Tem algumas estatísticas que mostram que apenas 2% dos crimes violentos são cometidos por jovens menores de 18 anos. Então, dizer que reduzir a maioridade penal vai resolver a violência é uma grande falácia, uma grande enganação, porque a grande parte da violência não é cometida por esses adolescentes. Que a opinião pública se equivoque sobre determinados aspectos, é compreensível, mas parlamentares e políticos – que deveriam ser a expressão da racionalidade da sociedade – se posicionarem desta forma é uma coisa muito grave, um desvão civilizatório do Brasil. Isso prova que os representantes do País não conseguem conduzi-lo de forma civilizada e correta.

Falando em equívocos, recentemente, a deputada Luiza Erundina disse à Brasileiros que a população, como o senhor disse, se equivoca, de forma que cabe aos parlamentares refletirem sobre as questões da sociedade. Para o senhor, como o parlamento deveria ter atuado nas votações do mês passado: seguindo a opinião pública ou debatendo de forma livre?
O parlamentar deve ser um condutor da sociedade, mas, no Brasil, ele vai na onda equivocada da opinião pública, porque quer trafegar onde pode conseguir votos, onde vai ter uma sintonia com os eleitores. Nem sempre a opinião pública está certa. Nesse ponto, por exemplo, ela está equivocada. Os parlamentares, de forma oportunista, são conduzidos pelo espírito de horda que predomina em torno da questão. Eles não estão cumprindo o papel que lhes cabe e estão contribuindo para degradar ainda mais a política, porque agem por oportunismo e sem nenhuma base de princípios e valores éticos ou morais.

No livro Conversas políticas – Desafios públicos, o senhor explica que a política surgiu na Grécia Antiga quando as comunidades destacavam indivíduos para cuidarem da segurança do grupo – responsabilidade que persistiu até hoje. De certa forma, quando a sociedade quer reduzir a maioridade penal, é porque está se sentindo insegura. Estamos vivendo um problema político, portanto, que não está suprindo seu papel de proteger os cidadãos?
A política não está conseguindo proteger seus cidadãos. Tanto é que a Anistia Internacional considera o Brasil o país mais violento do mundo, com 56 mil mortes violentas por ano. A pesquisa feita por eles mostra que se mata mais no Brasil do que em três zonas de guerra do mundo atual juntas. É uma guerra social natural que, infelizmente, a sociedade brasileira não percebe. Ao contrário, ela age estimulando mais violência ainda. No Rio de Janeiro, por exemplo, morre gente toda semana vítima de bala perdida ou em confronto entre policiais e bandidos, o que mostra o caráter permanente que essa guerra social natural adquiriu. É evidente que há uma enorme falha do Estado. O problema da pobreza e da falta de oportunidades é um aspecto, o problema da degradação moral do próprio Estado e da própria sociedade é outra. Vivemos em uma sociedade permissiva do ponto de vista da lei. Quando um motorista viola a lei do trânsito, o que ele está estimulando? A fuga da lei, a permissividade da sociedade. Esses jovens, que evidentemente são mais estimulados até por questões hormonais, percebem o funcionamento dessa sociedade e também passam a agir ilegalmente. Nesse sentido, há uma grave responsabilidade da sociedade brasileira, porque ela é permissiva e não quer cumprir a lei.

Mais um mecanismo que influencia na decisão de menores entrarem no crime?
Exato. Imagina o jovem que não teve oportunidade observando essa sociedade que sonega, que não dá espaço e que viola as condutas mais elementares de um país civilizado: ele também vai se permitir violar a lei. Esse é o quadro perverso da sociedade brasileira. Por outro lado, veja o seguinte: hoje se debate muito a questão da segurança pública, mas todos os agentes envolvidos nesse debate não conversam entre si. As polícias são vistas como culpadas, sendo que elas não são – evidentemente sabendo que elas cometem excessos, mas entendendo que a responsabilidade sobre elas é dos governadores -, é o setor político que não consegue dar um novo direcionamento à polícia. Temos as ONGs que trabalham com a violência e o próprio Estado. Nós da Fundação Escola de Sociologia e Política criamos um grupo para debater a segurança pública com a presença dos pesquisadores principais das universidades, das polícias, das ONGs, do Ministério Público, para conversarem e tentar produzir um diálogo. Se não se produzir um diálogo, se não se quebrar a estigmatização, apontando um dedo um para o outro, não encontraremos soluções.

Ainda no livro, o senhor fala bastante sobre a violência como um traço característico humano e, de forma consequente, as instituições só existem para controlar, entre outros limites, essa violência. Volta-se a um questionamento parecido ao anterior: as instituições deixaram de limitar essa intensidade de violência, fazendo com que a criminalidade aumente, o sentimento de insegurança ganhe uma intensidade maior e, enfim, surjam medidas como diminuir a idade penal. O mecanismo é esse?
Veja o seguinte: a América Latina é a região mais violenta do mundo hoje. Normalmente, quando há surtos de violência, aqueles que mais a praticam são os jovens, porque eles têm menos cálculos dos riscos das ações que produzem, por conta de questões hormonais, do espírito de aventura e assim por diante. Uma pessoa adulta pensa melhor sobre o risco que está envolvido numa determinada ação ilegal. A questão da violência – que do meu ponto de vista é uma componente da concepção humana e a humanidade não vai conseguir se livrar da violência – precisa ser controlada, ser dirigida em um rumo que, embora não elimine a competitividade, que não seja uma competitividade violenta. A sociedade deveria estimular, além do mais, outros valores: a justiça, a igualdade, a solidariedade. Nós não somos uma sociedade que estimula valores. Se não mudarmos nossa educação fundamental e média, fazendo com que ela seja um instrumento de cidadania, de valores éticos, acho que o Brasil vai penar por muito tempo com essas desagregações, anomalias e patologias que conhecemos.

Aldo Fornazieri - Foto: Reprodução/ Facebook
Aldo Fornazieri – Foto: Reprodução/ Facebook

O Brasil e a Venezuela deturparam, se assim pode-se dizer, umas das explicações ao crime: a de que ela é maior onde há maior desigualdade. Nesses dois países, a violência aumentou no mesmo período em que se diminuiu a pobreza. Como se explica esse fenômeno?
Talvez a pobreza tenha diminuído, mas existe um grau de desigualdade muito grande ainda, porque veja o seguinte: o que foi feito no Brasil não foi uma revolução que propiciou o surgimento de uma nova classe média. Os 40 milhões que ascenderam socialmente, ascenderam muito pouco, e agora, com a crise econômica, estão perdendo. Não houve uma revolução social, uma transformação profunda. Muita gente continua pobre e, mais do que isso, a desigualdade segue aumentando, porque o nosso sistema induz a distância entre classes. Portanto, não dá para pegar isso como regra. Acho que, quando falamos de violência, temos de analisar duas questões: a socioeconômica e cultural e a moral. Hoje nós temos o presidente da Câmara dos Deputados e do Senado investigados pela Polícia Federal. Temos 10% dos parlamentares analisados Operação Lava Jato, assim como o Executivo. Quer dizer: se não tem um exemplo de cima, há um enfraquecimento ético e moral completo da sociedade, um sentimento de permissividade que vem aqui para baixo.

Outra vez se baseando na entrevista que o senhor concedeu ao livro, há uma menção à crise de governança do Estado, que não responde satisfatoriamente aos problemas e não consegue orientar o futuro. Esse debate poderia ser antecipado de alguma forma pelo próprio Estado – partindo da percepção de que essa agenda se deu debaixo para cima?
Deveria. Houve um erro do governo na questão da maioridade penal, porque já se sabia que viria uma pressão forte e o governo não adotou nenhuma iniciativa. Ficou paralisado. Me parece que o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, ainda percebeu o problema e tentou construir um caminho alternativo, que é a mudança do ECA, aumentando o tempo de internação, hoje apoiada pelo governo. Acredito que seja a medida mais sensata. Não deve ficar como está, mas também não deve avançar a ponto de reduzir a maioridade. O próprio sistema de internação precisa ser melhorado. Semana passada saiu reportagens na mídia mostrando menores que estavam sendo agredidos em uma das unidades. Agora não dá para jogar esses meninos nas penitenciárias comuns, porque essa juventude já é vitimizada pela sociedade. Precisamos dar perspectivas a esses jovens.

A proposta de criar instituições de prisão separadas das penitenciarias comuns é válida?
Preferiria a proposta do Senado, que não reduz a maioridade penal e aumenta o tempo de internação. A proposta da Câmara é uma medida que não quer responder o problema sob nenhum ponto de vista.

A maioria dos grandes nomes do pensamento social cita, em algum momento, o papel revolucionário da educação. No Brasil, obviamente resolveria, mas a longo prazo. Há alguma medida que diminuiria a criminalidade entre jovens em curto prazo ou apenas investimento educacional a longo prazo mesmo?
A maior aposta precisa ser na educação, mesmo que ela seja considerada uma solução de longo prazo. Agora, se o país tivesse uma política educacional para enfrentar o problema no ensino médio, onde se dá o grande problema do nosso sistema educacional – um número significativo de jovens não conseguem terminá-lo – essa seria a grande aposta. Mas não basta apenas isso. A educação precisa assumir uma dimensão moral e civilizatória. Esse problema precisa começar a ser solucionado no ensino fundamental. Acho que nem é uma solução tão a longo prazo assim, porque veja: se você introduzir um ensino ético-moral e transformar a educação num elemento de cidadania, em poucos anos terá uma mudança drástica, já que o ciclo da educação fundamental é de quatro ou cinco anos. Se essa perspectiva continuar no ensino médio, então, teríamos apenas esse período de tempo para ver a mudança. Não é tão longo prazo assim. É de médio prazo. Para mim, mais do que isso, é a aposta fundamental.

Mas e além da educação?
O Estado deveria investir em políticas públicas para esses jovens. Um exemplo: os “pancadões” são locais de degradação dessa juventude. Ali tem muita bebida, sexo irresponsável, drogas, etc. Ali são os caldeirões da degradação. Se o Estado chegasse com políticas públicas, ordenasse esses eventos, se as prefeituras dessem oportunidades de cultura, esporte e lazer para esses jovens, constituiria outro processo de formação deles. Além do mais, muitos desses eventos que acontecem espontaneamente na sociedade são organizados pelo crime organizado. Então, temos que fazer as duas coisas: investir em educação em médio prazo e fazer um enorme esforço nas várias esferas da administração pública no sentido de políticas que atendam a essa massa de jovens, principalmente nas periferias.


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