O Mappin ainda era aberto e vendia de tudo: de eletrodomésticos a LP’s; de calçados a instrumentos musicais; de roupas para bebês a acessórios automotivos. A loja era sediada no mesmo edifício em frente ao Teatro Municipal ocupado, hoje, por uma das lojas da rede Casas Bahia. Naquela manhã de Verão de 1986, a poucos passos de uma das portas de acesso ao Mappin, a maior loja de departamentos de São Paulo, estava eu, aos 14 anos, pela primeira vez, diante da faixa de pedestres que cruza a Rua Xavier de Toledo e leva ao calçadão do Viaduto do Chá.
De olhos vidrados e atônitos com a imponência da cidade, eu aguardava paciente a abertura do sinal de pedestres para seguir até um cartório na Praça da Sé. Já havia passado ali por inúmeras vezes, mas de carro, na companhia de meu pai, João. Estacionado diante da faixa, pude observar a beleza do Teatro Municipal, a exuberância das palmeiras imperiais da Praça Ramos de Azevedo e, ao fundo e à esquerda, o topo do Martinelli e do arranha-céu do Banespa que, mesmo com a extinção do banco estadual, até hoje é carinhosamente chamado de Banespão.
A meu lado, diante da faixa de pedestres, impaciente com o farol fechado e indiferente com o turbilhão de estímulos visuais que me impactava, estava o experiente Joel, office-boy de 17 anos que, havia três, era funcionário da mesma empresa de engenharia de telecomunicações que abriu as portas do mundo profissional para mim.
Naquela segunda metade dos anos 1980, era comum que adolescentes como eu começassem a trabalhar aos 14 anos – hoje, a idade mínima permitida é 16 – e não hesitei em correr atrás de um primeiro emprego para aliviar do bolso de meus pais despesas com roupas e outras coisas que, cada vez mais, despertavam meu interesse: LP’s, livros, revistas e fanzines, fitas K-7 virgens para fazer coletâneas musicais, VHS’s com filmes e documentários e, claro, peças de reposição da minha bicicleta – à época, nos finais de semana, meu esporte predileto era tirar minha pobre mãe Edwiges do sério com a prática do BMX e do Freestyle.
Diante da faixa de pedestres, Joel e eu às voltas com meu primeiro dia de trabalho. Claro, inexperiente e prestes a completar a 8ª série do ginásio (hoje Fundamental II), fui contratado para exercer o mesmo cargo de Joel. Motivo pelo qual ele foi incumbido de, ao longo daquela semana, me ensinar as principais rotas do Centro Velho (onde ficam O Pátio do Colégio, a Catedral da Sé e o Marco Zero) e do Centro Novo (região entre a margem oposta do Viaduto do Chá e a Praça da República).
Com o batismo de Joel, o Centro de São Paulo tornou-se palco de minhas primeiras aventuras como office-boy e mesmo que elas tenham durado pouco, logo fui promovido e confinado como auxiliar de escritório, não tenho a menor dúvida de que foi esse o estopim da enorme paixão que até hoje nutro pelo Centro.
A empresa para a qual trabalhávamos ficava na zona Sul de São Paulo. Durante a viagem de ônibus a caminho da Xavier de Toledo, num diagnóstico precipitado, característico do sectarismo bobo dos adolescentes, julguei que haveria pouca empatia entre eu e Joel. Apesar da pouca idade, eu já tinha algumas convicções. Uma delas a devoção pelo rock n’ roll de vanguarda cultuado pelos mais velhos em clubes que, menor de idade, eu ainda não podia frequentar, como Napalm, Carbono 14, Rose Bom-Bom, Ácido Plástico, Madame Satã e Radar Tantã.
Na conversa que tivemos até chegar à faixa de pedestres na Xavier de Toledo, Joel falou de seus hábitos, das coisas que gostava de fazer em seu tempo livre e ficou claro para mim que trilhávamos caminhos totalmente opostos. Eu morava no Balneário São Francisco, bairro da zona Sul, à margem da represa Billings. Joel, que era negro, também morava na zona Sul, mas no Grajaú.
Naquela manhã de segunda-feira, ele estava vestido com a indumentária característica dos que, à época, eram chamados de “função”. Esclareço. A alcunha surgiu como um neologismo depreciativo, afinal, “fazer uma função” era a gíria da época para a prática de pequenos roubos e furtos, como tomar o relógio de algum transeunte, ou surrupiar um par de tênis no varal do vizinho. Tais delitos eram muito comuns na entrada e na saída dos bailes de rap, quando pequenos grupos decidiam “fazer a função”. Mais comum ainda era moleques como eu, pouco afeitos à cultura Hip-Hop, estereotipar todo e qualquer “mano” de “função”.
Naquele primeiro encontro, Joel deixava transparecer que, apesar de ser um sujeito trabalhador, também era da tribo “função”. Ele vestia calça jeans com a barra boca de sino improvisada com retalhos de jeans cortados em V – artifício chamado pelos funções de “pizza”. O calor era de lascar, mas ele não abria mão do agasalho Adidas, nem que fosse para carregá-lo o dia todo dobrado no braço, e calçava um par de tênis da mesma marca – influencia clara do trio RUN DMC, ícones do Rap americano. Na cabeça, claro, sempre depois de sair do escritório, Joel ostentava um boné ou, melhor, uma “bombeta”, no bom dialeto função, de aba em riste.
O semáforo de pedestres abriu e dei o primeiro passo em direção ao Viaduto do Chá. Num gesto rápido e certeiro, Joel me puxou pelo braço e fez com que eu retrocedesse até a calçada. Uma Kombi, que ignorou o farol fechado, passou, veloz, pela multidão e fez com que meu coração disparasse frenético e um frio intenso invadisse meu corpo. Não fosse o gesto ágil de Joel, segundos depois, eu poderia ter estatelado na lataria frontal da Kombi e, quem sabe, morrer na faixa de pedestres da Xavier de Toledo para estampar a capa do Notícias Populares na manhã seguinte com a manchete em letras garrafais “Office Boy vacilão é esmagado por Kombi na frente do Mappin”.
Daquele momento em diante, e nos dias que se seguiram desde aquela primeira semana de office-boy, nossa amizade só fez crescer. Graças ao amigo Joel aprendi também a lição de que mais do que deslumbramento, o Centro de São Paulo exige muita atenção. Quase 30 anos depois desse episódio, o Centro continua para mim um lugar excitante, diverso e multicultural, repleto de personagens fascinantes espalhados em lojas, galerias, cinemas, bares, teatros, museus, restaurantes, bancas de jornal e casas noturnas. Meses após esta segunda-feira, eu já conhecia cada rua, cada esquina e cada artéria de asfalto que dá vida ao coração pulsante da cidade que tanto amo.
Onde quer que ele esteja, gratidão redobrada ao amigo Joel. Em homenagem a ele, deixo aqui o rap Centro da Cidade, lançado por McJack em 1988.
Deixo também a canção Terra do Amor, bela reverência a nossa cidade, lançada em compacto 1972, pela dupla baiana Tom e Dito.
Parabéns, São Paulo!
Em tempo: moro no Alto da Lapa, bairro que também adoro, e tenho um filho de 12 anos, Davi, que reside em pleno burburinho da rua Augusta no Baixo Centro. Claro, o menino também já foi seduzido pelas dores e delícias do bom e velho Centro.
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