Às 19h10 da noite em plena quarta-feira, dia 24 de fevereiro, o barulho do trator já era ensurdecedor. Até aquele minuto, dentro do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, três casas da comunidade Vila Autódromo ainda permaneciam de pé. Feitas de tijolo, não combinavam com as arenas esportivas que as cercavam. As enormes estruturas de concreto, construídas em nome da Olimpíada, pareciam discos voadores, cercando-as.
As três moradias faziam parte da comunidade antes de serem engolidas pela Olimpíada. Foram isoladas por uma cerca de arame e acabaram dentro do perímetro onde os atletas do mundo irão se concentrar em agosto deste ano. Isoladas, seus habitantes só podiam entrar com crachá e autorização do segurança do megaevento esportivo.
Os moradores já sabiam que as suas casas estavam com os dias contados. Uma ordem de imissão de posse (Veja aqui o documento) em favor da prefeitura fora dada às 22 horas da noite anterior. A Pública foi o único veículo a conseguir entrar e filmar o local. (Assista ao vídeo abaixo)
Quando chega uma ordem dessas, as pessoas da Vila Autódromo já sabem que não serão avisadas sobre a data e a hora em que o trator vai derrubar aquilo que passaram a vida toda construindo. Heloísa Helena Costa Berto, a mãe de santo Luizinha de Nanã, decidiu ficar dentro da casa, esperando. Ali funcionara também o seu terreiro de candomblé. A casa ao lado era da sua filha Anna Raphaela.
Apesar de toda a pressão – ela chegou a ser ameaçada de morte por uma ex-inquilina e fora alvo de humilhações e boatos espalhados pela subprefeitura, segundo seu relato –, dona Heloísa não quis aceitar as indenizações oferecidas pelo governo municipal. Exigia um plano de urbanização na própria Vila Autódromo e a promessa de reassentamento na própria comunidade.
No fim da tarde do dia 24, quem avisou que estava na hora de dona Heloísa e sua filha perderem a casa e o centro espiritual foi a Guarda Municipal. Dois ônibus lotados de guardas enviados pela prefeitura chegaram antes das 17h. Com eles havia representantes da Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania.
“Eu sinto o cheiro desse povo de longe. Não dou papo. Aqui é tudo farinha do mesmo saco. Eles não moram aqui e vivem disso”, disse Marli Ferreira Lima Peçanha, coordenadora de Articulação Social da secretaria, ao chegar ao local.
As representantes da prefeitura se irritavam com a demora para demolir o imóvel, mas o entra e sai de gente recolhendo os poucos pertences que restavam dentro da casa de dona Heloísa era árduo. A máquina de lavar roupa, algumas mudas de plantas, panelas, materiais usados nas práticas religiosas da moradora e seis animais de estimação (três cachorros, duas tartarugas e um gato) foram amontoados no meio do pavimento.
“Tira o assentamento porque a gente está considerando tudo [os pertences da moradora] lixo”, dizia Renata, funcionária da Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania, que não quis dar o seu sobrenome, ao assistir à cena.
Sua colega, Sandra (que também não quis se identificar), tirou o celular do bolso e começou a filmar a repórter da Pública. Ela não foi a única. Esta repórter não pôde filmar livremente o que se passava.
Quando cheguei, o comandante da escolta me impediu de ingressar na casa e pediu para um guarda armado ficar na minha frente para impedir a entrada. Quando me identifiquei como imprensa e pedi para ele repetir para a câmera o que havia dito, ele negou. Três guardas começaram a me filmar ostensivamente.
Às 19h10, a prefeitura deu a ordem para o trator fazer o seu percurso irreversível. Em poucos minutos, as casas que antes abrigavam dona Heloísa e sua família viraram pó. Luizinha de Nanã pediu desculpas à reportagem: nessas horas, disse, prefere ficar quieta. Sentou-se num banco e ficou observando as paredes caírem.
A nova onda de demolições na Vila Autódromo tem sido um dos episódios mais traumáticos dos preparativos para a Olimpíada. Cerca de 50 famílias resistem – os moradores querem continuar vivendo onde sempre viveram. Apenas dez dias antes, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) chegou a dizer que não estava definido quantas remoções seriam feitas e que haveria negociação. Depois, mudou de ideia.
Na manhã do dia 24, a associação dos moradores e o único restaurante da comunidade também encontraram a roda do trator da prefeitura. Além delas, mais duas casas da comunidade, do lado de fora da cerca, entraram no decreto de despejo anunciado no dia 24: a da família de Maria da Penha Macena, liderança da resistência às remoções, e a de Rafaela Silva dos Santos, moradora da comunidade há 28 anos que reside lá com o marido e quatro crianças.
Entre o entulho e a poeira
Na manhã do dia 23, recebi uma ligação da moradora Nathalia Silva me avisando que um vizinho havia quase sofrido um enfarte depois de um confronto que teve com um operário da obra do Parque Olímpico na manhã do mesmo dia. Fui correndo ver de perto o que estava acontecendo.
No passado, uma bonita lagoa preenchia quase toda a área. Coberta de concreto, a área se transformou no Parque Olímpico. O acesso à lagoa foi bloqueado por uma cerca enorme que os empurra em direção ao parque. Como no caso do vizinho em questão, Márcio Henrique de Jesus Moza, marido de Rafaela.
Ele me mostra a foto de seu antebraço roxo, marcado pela mão do operário que o agarrou quando ele tentou chegar à sua casa, vizinha ao Parque Olímpico. O pequeno imóvel de dois quartos abriga ele, Rafaela e os filhos. Entre eles um bebê de 20 dias chamado Sofia Valentina.
“A estrutura da minha casa está toda rachada por conta da obra que estão fazendo no Parque Olímpico, cada vez mais próxima da minha casa. Ontem mexeram a cerca mais próximo da gente. Agora a casa toda treme. O meu bebê não consegue dormir. O meu medo é o teto desabar em cima da minha filha de 20 dias”, conta Márcio.
Ali em volta, dezenas de casas já haviam sido demolidas. O que restou foi entulho, poças de água, lixo e insetos por todos os lados. Mas, em meio a toda aquela angústia, existia algo bonito. O pouco que se tinha no meio daquela cena apocalíptica de poeira e restos das demolições anteriores era compartilhado entre os habitantes.
Amor Divino
O ponto de encontro da vizinhança é a casa de Maria da Penha Macena. Ali se escuta música, se almoça e se toma café com pão quente a qualquer hora do dia. A porta da casa da dona Penha nunca está trancada, e os moradores que vivem ali as próprias tormentas transitam por lá para compartilhar as suas histórias uns com os outros.
Em um desses momentos de convivência na casa da dona Penha, fui tomar um suco que ela havia feito com as frutas de seu jardim. Estava sentada em um banco quando uma senhora de cabelo enrolado, que me pareceu um tanto tímida, se aproximou de mim e começou a me contar a sua história.
Marisa do Amor Divino está morando desde o dia 23 de outubro de 2015 na casa de dona Penha. Moradora da comunidade da Vila Autódromo há 35 anos, ela não tinha mais para onde ir quando demoliram a casa que era seu lar. Dona Penha a acolheu. Com 60 anos e os familiares todos falecidos, Marisa perambulava pela comunidade sem saber o que fazer quando foi despejada.
Ela conta que, na manhã em que a casa dela foi demolida, havia saído para uma consulta. Quando voltou, seu lar havia sido destruído e todos os seus pertences haviam desaparecido com o entulho.
A casa de Maria da Penha Maceno continuará recebendo os moradores até dar o seu último respiro. A data e a hora da demolição já não importam. Em meio a esse entra e sai de gente, o barulho do trator chega como chegou à casa de dona Heloísa.
“Os bens materiais se vão, mas as pessoas ficam”, diz dona Penha, abatida. Sua casa deve ser demolida na manhã desta quinta-feira, como um gesto simbólico: também a casa da liderança, o ponto de encontro e resistência da comunidade, deve virar pó sob os tratores para dar lugar à marcha olímpica.
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