“UPPs estão contaminadas pelas piores práticas da PM”, diz especialista

Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, a cientista social Silvia Ramos é uma das mais respeitadas especialistas em segurança pública do Rio de Janeiro.

Ex-coordenadora do programa UPP Social, que buscava levar ações sociais às unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a pesquisadora também está à frente, junto com as irmãs Bárbara e Leonarda Musumeci, do estudo UPP: o que os policiais pensam?, cuja terceira edição foi publicada esta semana.

Em entrevista à Agência Brasil, Silvia Ramos avaliou como positiva a criação das UPPs, sete anos atrás, por ter trazido o conceito de polícia de proximidade (ou polícia comunitária) à política de segurança do Rio de Janeiro, historicamente marcada pelos confrontos entre policiais e criminosos.

Para a especialista, entretanto, a política de pacificação está em risco. Segundo ela, os policiais das UPPs estão passando a adotar “as piores práticas” dos batalhões tradicionais da Polícia Militar (PM), como o confronto armado com os criminosos, a execução de suspeitos e a adulteração de cenas de crimes.

Silvia Ramos também defende uma participação mais efetiva da Polícia Civil, com o aumento do número de investigações, para tentar reverter o cenário de controle territorial armado que já afeta as favelas do estado há mais de 30 anos.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida pela especialista:

Agência Brasil –  Em 2008, o Rio de Janeiro recebeu a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e a política foi recebida com muita euforia pela imprensa e pela população. Que avaliação a senhora faz desses sete anos das UPPs?

Silvia Ramos – 
A avaliação é muito positiva quando a gente olha os índices de homicídio do Rio de Janeiro. Eles caíram acentuadamente ao longo desses sete anos, revertendo uma curva de crescimento. A gente tem, em média, quase 2 mil pessoas a menos assassinadas por ano, em relação ao que era no passado. As UPPs fazem parte de uma política de segurança em que a ideia de preservar a vida foi assumida como centro. Não foram só as UPPs. Tem as metas que cada Área Integrada de Segurança Pública [regiões que reúnem um batalhão de Polícia Militar e algumas delegacias] tem que cumprir. E as metas mais importantes são justamente aquelas sobre a redução de homicídios, de letalidade violenta [nomenclatura que reúne homicídios dolosos, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e mortes provocadas pela polícia]. Foi criada a Delegacia de Homicídios que vem para transmitir a seguinte ideia: nem todo homicídio ficará impune, porque era isso o que a gente tinha, com menos de 5% dos homicídios sendo elucidados. Foram várias coisas. E as UPPs vieram com a lógica de alterar o foco de política para as favelas, que era uma política de confronto e da guerra, de entrar atirando, passando a ser uma política de proximidade, de prioridade da vida e não de prender ou matar criminoso. Então, considerando esse panorama geral, as UPPs vêm como parte dessa política, cujos resultados são, estatisticamente, positivos.

Mas nos últimos anos essa política apresentou vários problemas.

Em relação às UPPs, parece que, em 2012, chegamos aos índices mais baixos e, a partir daí, houve a volta de várias coisas, como os tiroteios dentro das favelas que já estavam com UPPs e [a adoção pelos policiais das UPPs] das piores práticas dos batalhões convencionais da PM nos últimos 30 anos. A gente passou a ver essas práticas ocorrendo dentro das próprias UPPs. A gente está hoje num momento muito delicado, do ponto de vista da reputação e das expectativas que a política das UPPs criou que foi a melhor possível desde 2012. A gente vive um momento de reversão negativa. Tem vindo à tona vários episódios: mortes de crianças inocentes por policiais de UPPs, atos de corrupção, flagrantes forjados, autos de resistência [nomenclatura usada pela polícia para justificar mortes em confronto com policiais]. Essas coisas estão vindo à tona, como se fosse a ponta do iceberg de um movimento de recuo da política de proximidade. E isso é muito grave. Mas eu acho que estamos num momento em que é possível retomar o projeto da proximidade em detrimento do projeto do confronto, se as autoridades estiverem determinadas a isso.

Base da UPP em favela carioca - Foto: EBC
Base da UPP em favela carioca – Foto: EBC

O Rio tem um histórico de controle territorial por quadrilhas armadas que remontam à década de 80, pelo menos. De lá para cá, o Estado nunca conseguiu resolver essa questão e o problema até aumentou, com o surgimento das milícias. A senhora acha que algum dia o Estado conseguirá acabar com esse controle territorial? Qual seria o caminho?

Essa ideia de que alguns territórios passam a ser dominados por quadrilhas armadas, que lá são senhores da vida e da morte dos moradores, é um fenômeno apenas carioca. Isso não acontece em nenhum outro lugar do Brasil. Tem poucos paralelos no mundo, onde um lugar como a favela Pavão-Pavãozinho, que fica dentro do bairro de maior PIB [Produto Interno Bruto] do Brasil, que é Ipanema, tem um grupo armado que define a que horas os moradores podem dormir, que roupa podem vestir e que interferem até na briga de marido e mulher. Essa distorção da vida democrática é uma coisa típica das favelas cariocas. A gente deixou isso acontecer por muito tempo. São mais de três décadas com esse tipo de tradição. O que a gente está verificando é que está sendo muito difícil reverter isso. A gente se surpreende com UPPs que já tinham cinco anos de pacificação sem tiroteio, na zona sul, de repente os grupos armados estão voltando com as armas e trocando tiros com a polícia que está lá dentro. Acho que as respostas a isso têm sido frágeis. Me parece que o principal [a se fazer] não é o confronto, mas o policial recuar, preservar sua relação de proximidade e colocar lá uma polícia forte de investigação. Para preservar a UPP, é importante que os policiais de proximidade não se exponham à lógica do confronto. Mas também é muito importante que a PM não fique sozinha nessas favelas. Essa situação de retomada de criminosos com armamentos de grande porte e grandes quantidades de droga só pode ser enfrentada com uma polícia de investigação [polícias Civil e Federal] e não de confronto. É isso que temos visto pouco até aqui e que torna o cenário futuro muito preocupante.

Por algum tempo, entre 2009 e 2012, parecia que o Rio de Janeiro estava no caminho certo, com quedas sustentadas de homicídios e roubos de rua. Então, a partir de 2013, os índices de criminalidade voltaram a subir. O que houve?

Não sei qual é o diagnóstico da polícia. De qualquer forma, me parece claro que, em vez de ter havido uma fragilização dessas facções do crime [durante o período de queda da criminalidade, entre 2009 e 2012], o que houve foi uma acomodação. Houve um período inicial de recuo e reacomodação [durante os anos iniciais das UPPs] e, depois, de retomada, primeiro de outros territórios. Enquanto os homicídios e outros crimes recuavam na capital, eles aumentavam brutalmente na Baixada e naquela região de Niterói e São Gonçalo. E aquilo foi sendo deixado de lado. Houve muita importância para as UPPs na capital e se deixou [as outras áreas em segundo plano]. Hoje a taxa de homicídios na Baixada Fluminense é quase de 60 por 100 mil habitantes enquanto a taxa de homicídios da capital é de 20 por 100 mil. A Baixada sempre teve uma taxa de homicídios mais alta do que a capital, mas agora a diferença entre uma e outra aumentou enormemente. Houve uma política de, a toque de caixa, chegar às 40 UPPs, e isso diminuiu a qualidade das próprias UPPs e deixou os batalhões da Baixada e de São Gonçalo à míngua em termos de efetivo e em termos de qualidade de policiamento, com os velhos comandantes e os velhos policiais, sem nenhuma política de renovação.

Rotineiramente, vemos casos de abusos cometidos por policiais. O mais recente é o de um grupo de policiais da Providência que, aparentemente, forjou um auto de resistência – colocando a arma na mão de um jovem morto. Por que casos como esse são tão comuns? Como o Estado pode lidar com isso?

Acho que prosperou na polícia do Rio de Janeiro a ideia de que, se for traficante, pode matar. Essa ideologia prosperou com a gratificação faroeste, no governo de Marcello Alencar, nos anos 90, quando o secretário de Segurança era o general Newton Cerqueira. Ali criou-se essa lógica do auto de resistência que não só autorizava como gratificava a execução e o extermínio de traficantes famosos e perigosos. Depois os autos de resistência foram tornados ilegais, mas, na cultura da PM, isso nunca se reverteu inteiramente. O policial militar sente que, se ele matar um traficante, ele não está fazendo uma coisa tão errada. E parece que essa lógica contaminou também alguns policiais das UPPs, que convivem diariamente com traficantes dentro das favelas e que estão se sentindo agora no direito de também matar. E, para que essa morte seja justificável, basta dizer que houve confronto. Para dizer que houve confronto, basta pegar a arma, dar dois tiros sujando o dedo de pólvora do rapaz que pertencia ao tráfico e essa morte sequer será investigada pelo delegado ou pelo Ministério Público. Então, nós temos um sistema que está facilitando isso. Acho que a PM não deu a devida centralidade para reverter essa cultura de, se for traficante, pode matar, mesmo que não seja em legítima defesa. Isso é o que tem de pior na PM hoje no Rio de Janeiro, embora isso seja apoiado por parte da população, que acha que bandido bom é bandido morto. Isso não justifica. A polícia tem que atuar na legalidade.


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