Este ano se comemora – pela quarta vez – o feriado em homenagem a morte de Zumbi, o escravo negro que liderou o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, atual região de Alagoas. O dia é lembrado na maioria dos Estados brasileiros (clique aqui para ver se sua cidade ou Estado faz parte da homenagem) e, especialmente neste ano, tem conexão com os vários casos de racismo que ocorreram em 2014, desde os insultos ao jogador Tinga, do Cruzeiro, na partida contra o time peruano Real Garcilaso, em Huancayo, no Peru, até as reclamações do goleiro Aranha, em Porto Alegre.
A edição de Brasileiros deste mês de novembro traz, em sua capa, uma matéria da repórter Luana Schabib sobre como essas diferenças ainda são latentes no País. Um dos casos mais repercutidos neste ano foi a do ator Vinícius Romão, confundido com um bandido em uma rua do Rio de Janeiro e preso injustamente. A história dele pode ser lida abaixo:
Vinícius Romão
Ele voltava para casa. Em sua cabeça, um black power bem levantado. Ele havia acabado de se formar em Psicologia e trabalhava em uma loja de roupas para sustentar sua nova busca – a atuação. Recentemente, havia feito figuração na novela da TV Globo Lado a Lado (2013), cujo enredo tratava da história de duas mulheres, uma branca e uma negra, vividas respectivamente por Marjorie Estiano e Camila Pitanga, que buscavam amor e liberdade na conservadora sociedade carioca do início do século 20. Que ironia.
Na ficção, ele se destacou como um ex-escravo. Negro, braços fortes, de beleza expressiva. Na rua, em fevereiro deste ano, Vinícius Romão, 29 anos, nascido no Rio Grande do Sul, também se destacou, só que dessa vez ao olhar de uma mulher que havia sido assaltada, de um policial à paisana e de outro homem de reação rápida. Morador do Méier, no Rio de Janeiro, foi abordado por aquele trio. Perguntaram-lhe se havia roubado uma bolsa. “Perguntaram”.
O jovem ator ficou parado – sem confrontar ou correr – sabia que o policial poderia dar um tiro. “Primeiro achei que estava sendo assaltado, depois vi a arma e pensei: ‘Chegou minha hora de morrer’. Não tem como descrever a sensação. Tudo poderia ter acabado ali.” Vinícius apresentou seus documentos, disse seu endereço e profissão, mas não bastou. A “certeza” da mulher foi o suficiente para que ele fosse levado para a delegacia. No 25º. DP, a Central de Flagrante, houve o diálogo definidor entre a vítima e o policial.
Ela disse: “Acho que foi ele”. O policial, incisivo, questionou: “Não tem nada de acho… Ou é ou não”. E então, ela afirmou: “Foi ele, foi ele”.
Em sua ficha passou a constar o artigo 157, que define assalto à mão armada. Vinícius não portava arma nem qualquer objeto da vítima. Um pesadelo. Ele deu seu depoimento atrás das grades. “Eles não registram nada. O documento que assinei estava com idade e profissão ignorados.” No dia seguinte, ligou para seu pai, Jair Romão, um militar aposentado, e foi levado à prisão de São Gonçalo. “Fui tratado como indigente. Cortaram meu cabelo e me jogaram na cela”. A família evitou falar com conhecidos, com medo de prejudicar o jovem, mas o silêncio provocou a preocupação dos amigos que, ao descobrirem o episódio, divulgaram nas redes sociais.
Vinícius ficou 16 dias preso. Emagreceu oito quilos. “Foi difícil de identificar como racismo no primeiro momento. Meu mundo era outro. Nunca tinha vivido o preconceito. Fui ignorado, fui preso porque sou negro – porque o cara que assaltou a mulher era assim. Então, não posso ter a minha identidade? Eu tenho que andar sempre arrumado para mostrar que eu sou alguém?”.
Essa história de Vinícius Romão remete à reportagem da revista Realidade, de outubro de 1967, assinada pelos repórteres Narciso Kalilli, branco, e Odacir de Mattos, negro. Com o título Existe preconceito de cor no Brasil, o texto escancarou o assunto de forma dura e direta.
Os jornalistas foram para as ruas de seis capitais– Belém, Recife, Salvador, São Paulo e Porto Alegre – durante 20 dias, simulando situações cotidianas fotografadas por Luigi Mamprin e Geraldo Mori. Narciso era acompanhado por uma moça negra, Odacir seguia com uma branca. Assim, mostraram a diferença do tratamento dado a um negro quando ele frequentava restaurantes ou simplesmente quando abraçava a namorada. Muitos olhares, risos e depoimentos foram registrados, como o de um comerciante, em Belém: “Aqui não existe preconceito, mesmo. Mas, essa história de casamento entre um escuro e uma branca é que ninguém gosta”.
A reportagem mostrou que no Brasil a igualdade racial só acontecia quando a situação financeira de um negro era igual à de um branco. Então, 47 anos depois, ainda é preciso a Organização das Nações Unidas (ONU) alertar que a situação é semelhante. No final de setembro, o órgão divulgou relatório que conclui que o racismo permeia todas as áreas da vida no Brasil, que vive em um “mito de democracia racial”, mas que há “racismo institucionalizado” e uma “ideologia de embranquecimento” na sociedade.
Segundo os dados apurados, a expectativa de vida entre os negros não passa de 66 anos, a dos brancos é seis anos maior. Sobre a polícia, a ONU alerta para a atuação que usa de critérios “baseados na cor da pele” dos cidadãos, assim como ocorreu com Vinícius, que hoje está desempregado e estuda teatro. “Nunca me senti diferente por ser negro, mas minha visão de racismo mudou. Hoje estou mais atento. Tenho uma página no Facebook que reúne pessoas com casos semelhantes. Dizem que somos uma folha em branco, para que a história seja escrita. Mas no nosso caso, a história já está escrita”, pontua o ator.
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