[45 de 100] Como deixar o leitor em estado febril, segundo Garcia Márquez

O_Veneno_da_Madrugada

Pelo menos três livros do escritor e jornalista colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927) justificariam a sua escolha para o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982: “Cem Anos de Solidão” (1967), “Ninguém Escreve ao Coronel” (1961), “Crônica de uma Morte Anunciada” (1981) e “O Outono do Patriarca” (1975), além de “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), lançado depois da premiação. São, claro, os mais conhecidos e vendidos. “O Veneno da Madrugada” ou “A Má Hora”, traduzido para o português pelo lendário jornalista e escritor Joel Silveira (1918-2007), embora não tenha tanto destaque quando se faz referência à obra do autor, é um daqueles romances que fazem jus ao talento de um grande romancista. Principalmente, pela atmosfera febril, narrativa sólida e consistente, e a certeza de que essa inesquecível história muitas vezes inspirou outros autores e, também, o cinema. O modo como ele descreve o calor asfixiante que atormenta os personagens é algo impressionante, que parece vazar das páginas e atordoar o leitor. 

Lançado originalmente em 1962, “Veneno da Madrugada” rendeu a Garcia Márquez o Grande Prêmio do Romance Colombiano, o mais importante do país na época. O escritor, entretanto, estava longe da consagração internacional que teria depois quando isso aconteceu. O livro saiu sete anos depois de sua estreia na ficção com “O Enterro do Diabo: A Revoada” (La Hojarasca – 1955) e mostra seu autor com um estilo mais amadurecido e sóbrio, próximo da excelência narrativa. Quando o começou, durante uma gélida viagem a Paris, planejara inicialmente um conto, mas a história cresceu rápido demais e o dominou – na primeira noite e madrugada, escreveu nada menos que dez páginas. Por causa de seu perfeccionismo, que o tornou famoso nesse aspecto, levou cinco anos para concluí-lo. Trabalhou no texto em diferentes cidades – Londres, Caracas, Bogotá e Nova York e foi concluído na cidade do México, em janeiro de 1961. Inscreveu-o num concurso literário que a multinacional Esso promovia em seu país e levou três mil dólares, que descreveu como seu primeiro alívio financeiro em uma década de apertos. 

A resposta do público, porém, foi pífia. Mesmo com muitos elogios da crítica, o livro vendeu poucos exemplares. O tempo lhe faria justiça e seria considerado um dos seus romances mais bem escritos, numa época em que ele vivia sob o impacto do neorrealismo do cinema italiano, surgido depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Identificou-se no texto também influências de dois autores que tanto admirava: Albert Camus (1913-1960) e Ernest Hemingway (1899-1961). Como observou o crítico e tradutor Eric Nepomuceno, Garcia Márquez faz na obra sua primeira aproximação com o tema que seria fundamental em sua obra posterior: o mistério e a solidão do poder. Ele o faz ao focar a trama em um rude alcaide – mistura de prefeito e delegado de polícia –, de formação militar, que, diante incompetência e da insensibilidade das autoridades de seu país, governa um vilarejo a partir de seus anseios e humores, sob a tórrida temperatura escaldante, que, sem dúvida, interfere diretamente em seu temperamento. 

Nesse exercício de pequeno poder, o militar não gosta de ser contrariado nem ter sua autoridade contestada. Até o momento em que folhetos anônimos surgem pregados pela cidade, com fofocas, intrigas e denúncias que envolvem os moradores mais ricos do lugar – segredos, adultérios, crimes etc. A trama começa com um crime, em um domingo de manhã. Um dos moradores do local mata com um tiro o suposto amante de sua esposa. O adultério fora revelado graças ao bilhete anônimo que pregaram em sua porta durante a noite. A partir de então, bilhetes começam a aparecer, revelando os segredos que as pessoas preferiam manter para sempre escondidos. No fundo, são boatos nem sempre com veracidade provada que se tornam públicos, coisas que todos desconfiavam, mas que não estão provados por quem os aponta. Isso faz com o clima de medo e terror diante de uma ameaça assim tome conta do lugar. 

Do personagem Adalberto Assis se dizia que tinha assassinado o homem que encontrou deitado com a esposa e tinha enterrado o corpo clandestinamente. Na verdade, matara com espingarda o macaco que surpreendera a se masturbar na trave do quarto, com os olhos postos na sua esposa enquanto ela trocava de roupa. E o suspense sobre a autoria das mensagens alimenta toda a história, até o fim, marcada por mexericos, dramas de verdade, farsa e tragédias que causam um pandemônio no lugar. Mas não é esse o poder que destaca “O Veneno da Madrugada” como um grande romance. Primeiro, porque Garcia Márquez cria um microcosmo de personagens inesquecíveis – Padre Angel, Juiz Arcádio, Senhor Carmichael, a Viúva Montiel, o barbeiro e o médico, entre outros – em que a comunicação entre os moradores aparece de modo fragmentando, em pequenos gestos, frases mal ditas ou incompletas em que as relações se estabelecem por símbolos que vão além das palavras ditas ou as tornam dispensáveis – para bom entendedor, meia palavra basta, não é verdade? 

A impressão é a de que como se qualquer esforço nesse sentido alterasse o estado acalorado e de dormência – e quase demência, em alguns casos – que atormenta os moradores. Isto é, como se os dias fossem eternos começos de tarde, com sua leseira de pós-almoço e sesta necessária. É, enfim, um romance que fala pelas entrelinhas, que envolve o leitor em sensações intensas – e fazê-lo até suar, de tão envolvente o texto –, graças ao talento do autor em, lentamente, envolvê-lo e torná-lo submerso na trama. Os dois títulos do livro estão relacionados a um fato que quebra o marasmo da cidade. Como sempre acontece dos folhetos intrigueiros serem distribuídos às altas horas da noite, explica-se a “má hora” e o “veneno da madrugada”. De certo modo, observa o crítico português Eduardo Pitta, García Márquez explorara o universo ficcional que o consagraria em “Cem Anos de Solidão” com “Veneno da Madrugada”. Desde o relato das histórias mais insólitas, às situações mais sórdidas, todo o tipo de singularidades acontece, sem alterar o registo do discurso. 

Na verdade, os nove romances que publicou entre 1950 e 1966 seriam estudos, experimentos para chegar ao seu momento maior, em “Cem Anos de Solidão”. O livro do alcaide mostraria a Macondo de “Cem Anos…” já como uma cidade derrotada, esquecida no tempo e no espaço. Nessa pasmaceira, pasquins misteriosos delatam crimes e pecados de determinados cidadãos. O pano de fundo de todas essas narrativas, diz Pitta, é o conflito que, nos últimos 150 anos, tem dividido a Colômbia entre liberais e conservadores, em particular a Guerra dos Mil Dias (1899-1903), verdadeiro Leimotiv da ficção de García Márquez. “Sob o manto pícaro da crônica de costumes, ‘Veneno da Madrugada’ ilustra a precária coabitação dos adversários”, observa o crítico, que cita como exemplo essa passagem:“’Havia ordens para acabar contigo’, diz o alcaide ao homem que julgou vingar a honra da mulher, ‘ordens para te assassinarem numa emboscada e confiscarem as tuas reses para que o Governo tivesse com que subsidiar as enormes despesas das eleições em toda a região. Sabes que outros o fizeram…’” 

Em seguida a esse alerta, a autoridade apresenta a conta. Desse modo, o traço distintivo é o tom neutro do relato, o que não exclui a fina ironia do autor, como se tudo, crimes e escapadelas, equivalesse-se na mesma ordem de valores. Apesar da lentidão que incomoda alguns leitores, o romance do escritor colombiano revela o que o crítico português chama de um tipo de narrativa-mosaico, onde cada capítulo ganha um crivo coletivo, centrando o foco narrativo em diversas personagens, de uma forma que a cidade de Macondo emerge como a personagem central do romance, mais até do que os personagens relevantes, como o padre Ángel ou o explosivo alcaide.


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