A cura pelos livros

"The Novel Cure" (A cura pelo romance, em tradução livre), de XYZ.Livros de autoajuda existem aos montes e, se juntarmos todos, fazendo um resumo do que dizem, é possível que pudéssemos transformá-los num volume só: um manual básico de bom senso.

Ella Berthoud e Susan Elderkin (esta, também romancista), duas autoras inglesas da School of Life, de Alain De Botton, propõem o contrário: expandir as possibilidades da autoajuda pela literatura, mas com livros de alta literatura.

Daí escreveram The novel cure: an A to Z of literary remedies, um divertido (e útil!) trabalho de biblioterapia, que se estende tanto a problemas de ordem emocional, quanto a outros mais pedestres: resfriado, insônia, diarreia…

Para este último incômodo, por exemplo, o remédio proposto pela dupla – que só receita romances e contos –  não seria a dose de um ou dois livros, como nos demais casos, mas uma seleção de títulos com textos fragmentados, feitos de aforismos ou capítulos curtos. (Exemplo? Diário de um ano ruim, do J.M.Coetzee). Perfeitos para uma situação em que a duração no cubículo é incerta e a volta a ele, por ouro lado, uma certeza.

Os remédios são bem escolhidos e a bula para cada um deles colocada de forma clara, com argumentos que certamente tentarão hipocondríacos convictos, mas que também hão de seduzir aos doentes de fato.

Para alcoolismo, por exemplo, mal grave que, coincidentemente, afeta uma grande porcentagem de escritores, a receita é básica e eficiente: uma dose de À sombra do vulcão, de Malcolm Lowry, e outra de O iluminado, de Stephen King. Ambos os livros mostram tão enfaticamente os estragos do uísque e do gim, que podem afastar seus leitores das garrafas por um bom tempo, senão para sempre. (Eu diria que, nesse caso, pode haver um efeito colateral indesejado: o de despertar ainda mais a sede em românticos seres autodestrutivos, especialmente o belo romance de Lowry – mas qual remédio não tem suas contraindicações?). Para quem prefere um similar nacional, recomendo o poderoso Diário do Hospício, de Lima Barreto. É tiro e queda!

Beber ou não beber, eis a questão. Albert Finney na versão cinematográfica de "À Sombra do Vulcão".
Beber ou não beber, eis a questão. Albert Finney na versão cinematográfica de “À Sombra do Vulcão”.

Resfriado? Elas sugerem qualquer livro de Agatha Christie, especialmente O assassinato de Roger Ackroyd. A explicação, curiosamente, é de ordem empírica: por algum motivo foi averiguada uma relação de causa e efeito entre as investigações de Poirot e o fortalecimento das células brancas de seu leitor.

Perda de libido

E se o caso é perda de libido, o melhor, garantem as autoras, por razões razoavelmente óbvias, é O elogio da madrasta, de Mario Vargas Llosa (do mesmo autor, poderiam ter escolhido também Travessuras de uma menina má). Coração partido? Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Crise de identidade? A metamorfose, de Kafka. Culpa? Essa é fácil: Crime e Castigo

Tudo parece ter solução via biblioterapia, até pressão alta. Nesse caso, elas receitam livros em que o leitor é obrigado a diminuir seu ritmo, como As ondas, de Virginia Woolf, ou As horas, de seu discípulo Michael Cunningham. E se o problema for “coceira no rabo”, ou excesso de inquietude, vá de Odisseia, dizem as duas. Para aplacar os ciúmes, garantem que nada é melhor do que uma boa dose do clássico do sadomasoquismo A Vênus das peles, de Leopold Von Sacher-Masoch.

A lista é imensa e inclui até remédio para quem sofre com a perda de um membro – no caso, o livro receitado é Peter Pan, certamente por causa do desafortunado Capitão Gancho e sua perna de pau. Quem detesta o próprio nariz, pode encontra consolo no best-seller O perfume, de Patrick Süskind (e, evidentemente, no Cyrano de Bergerac, que elas esqueceram de mencionar.) Para obesidade, uma das receitas é o ótimo Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi: infeliz com a morte da esposa, Pereira busca alívio em omeletes gordurentos. Quando ele é subitamente envolvido em atividades subversivas contra o fascismo, busca também uma vida mais saudável e sua cintura agradece.

Um dos remédios mais fortes propostos no livro é o Cândido, de Voltaire, indicado para quem tem excesso de otimismo. Os muito obsessivos também vão encontrar guarida nas leituras de Moby Dick, de Melvile e Morte em Veneza, com o pobre Aschenbach perdendo a cabeça pelo belo Tadzio, na novela imortal de Thomas Mann.

A única coisa que esse livro não vai curar é talvez justamente um outro tipo de obsessão: a obsessão pelos livros. Mas dá para dizer que essa é uma doença “benigna” e que não existe risco de overdose.


Comentários

2 respostas para “A cura pelos livros”

  1. Avatar de Vittorio D'Afflitto
    Vittorio D’Afflitto

    Você tem um ponto, Jesi. E assim prossegue a tautologia.

  2. Obsessão pelos livro? Que tal o Dom Quixote?

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