Começaremos com uma indagação e terminaremos com outra:
Qual o valor do dinheiro? Por que um instrumento muito inteligente que a humanidade conquistou, um objeto intermediário para as trocas, frequentemente degenera e vira um potente instrumento para o fanatismo e a guerra? Há uma psicopatologia ligada ao dinheiro (e ao poder) que merece ser tratada com maior profundidade.
A coluna Seis Sentidos, através de algumas pesquisas e dando asas à imaginação, conseguiu rastrear o percurso de uma nota de 100 Reais nestes nove meses de sua história. Merecemos por isso um Certificado de Utilidade Pública.
Além daquelas características mais conhecidas e explícitas, como a figura da República de um lado e a garoupa de outro, há ainda mais 10 particularidades que dificultam a sua falsificação. Cada cédula, por exemplo, é numerada. A nossa é a A3007014044A, ou, para facilitar, simplesmente A3007. Há também um fio vertical de cor escura embutido no papel, mais facilmente visível com a nota contra a luz, com propriedades magnéticas, que serve para leitura por equipamento eletrônico de seleção e contagem. Através desse fio realizou-se o rastreamento.
Inspirado por Gay Talese, mestre do New Journalism, que mistura jornalismo com literatura, vida com arte, fluiu em mim o registro do percurso realizado por A3007, que pode contribuir como modelo para novas tecnologias de combate à corrupção e lavagem de dinheiro. O que ocorre com o chamado blockchain, uma espécie de cartório na internet, aberto, gratuito e transparente. Já está disponível e foi recentemente capa da revista The Economist.
Início do Registro:
A3007 saiu dos fornos da Casa da Moeda no início de 2015. Em meados de maio do ano passado ela era a primeira nota de um pacote de dez notas, entre outros 99 pacotes, todos eles dentro de proverbiais envelopes pardos. Em agosto, essa dinheirama foi confiscada por uma daquelas operações com nomes exóticos da Polícia Federal. Deu-se conta, dias depois, que faltava uma nota para completar os 100 mil Reais. Era justamente a A3007, que uma semana antes da “casa cair”, foi muito utilizada numa balada, bem enroladinha, para cheirar a cocaína que o patrão do esquema costumava oferecer. Ela acabou ficando com o ambicioso chefe-de-gabinete do deputado, que lambuzava suas narinas com uma asquerosa mistura de ranho e pó, enquanto desenvolvia seu delírio de grandeza: tornar-se o homem mais rico do Brasil, e investir 1% de sua fortuna num Instituto de Responsabilidade Social, com foco na educação. Por dois dias a cédula permaneceu no caixa de uma lanchonete vagabunda na periferia da cidade e em seguida, passou a habitar, durante uma semana, o bolso do suspeitoso dono de uma casa de material de construção, para depois, chegar às mãos do menino, que em troca dos serviços sexuais prestados no fundo da loja, entre tijolos e sacos de cimento, recebera a A3007. O menino foi correndo até a banca do Zé, esbaforido queria torrar os 100 Reais nas figurinhas do Brasileirão. Zé, com sua sabedoria, já tinha mapeado o movimento. Olhou firme e fundo para o menino. Deu-lhe de presente cinco pacotes das figurinhas e, devolvendo os 100 Reais, recomendou que os guardasse como testemunha de algo que ele ainda não conseguia entender. No início do mês passado, A3007 acalmou os ânimos exaltados do proprietário da casa em que vivem o menino e sua família, que muito bravo com o atraso do aluguel, já considerava despejá-los.
Fim do Registro.
A vida não imita a arte nem a arte imita a vida. Simplesmente convoca-se a arte se a vida não basta.
O que seria de mim (e da minha coluna) se não houvesse estranheza, perplexidade nem espanto?
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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