Confesso. Não conhecia bem o trabalho e a vida de Maya Angelou até saber de sua morte, no dia 28 de maio. E fiquei surpreso com a riqueza de ambos. Não à toa, a escritora é especialmente lembrada pelos sete volumes de memórias que deixou. Quando se sabe as inúmeras dificuldades por que ela passou e tudo o que ela fez de admirável, parece que a conta não fecha: como alguém pode viver tantas aventuras numa vida só, num corpo só, numa só consciência?
Seu pai era porteiro, sua mãe enfermeira. Negra, nasceu em 1928, em St. Louis. Os pais se separaram e aos oito, Maya foi violentada pelo namorado da mãe. O sujeito foi preso, porém solto um dia depois. Em menos de uma semana foi assassinado. Sentiu-se responsável pelo ocorrido, Angelou ficou muda por cinco anos, até que uma professora incentivou-a a ler e escrever.
E isso é só o começo. Entre mil outras coisas, ela foi a primeira condutora mulher de bonde nos EUA; foi prostituta; cozinheira; dançarina; cantora de calipso (há um disco dela muito bom, Miss Calypso); fez parte de uma célebre montagem de Porgy & Bess; escreveu peças de teatro, roteiros para TV e cinema, dirigiu filmes, foi correspondente no Egito e em Gana; foi ativista pelos direitos civis, trabalhando ao lado de Martin Luther King e Malcolm X; professora universitária, escreveu três livros de ensaios, vários de poesia, recebeu mais de 30 títulos de doutora Honoris Causa, casou com um branco quando isso era um ultraje para a sociedade conservadora, teve filho aos 17….
Em 1993, recitou um poema na posse de Bill Clinton, cuja gravação correu mundo e ganhou um Grammy. Foi a(o) primeira(o) poeta a recitar numa posse presidencial desde que Robert Frost falou na inauguração da administração de John Kennedy, em 1961. Tentei traduzir o poema. Aqui vai:
NO PULSO DA MANHÃ
Uma Pedra, Um Rio, Uma Árvore
Lares de espécies há muito desaparecidas,
Marcaram o mastodonte e
O dinossauro, que deixaram pistas secas
De sua passagem por aqui
No solo do nosso planeta, mas
Qualquer sinal mais evidente da proximidade do desastre
Se perdeu na penumbra de pó e tempo.
Hoje, porém, a Pedra conclama aos gritos, com determinação e clareza,
Subam nas minhas costas
E encarem seu destino distante,
Mas não busquem consolo na minha sombra.
Não lhes darei um lugar para se esconderem.
Pois vocês, criados num nível logo abaixo dos anjos,
Passaram muito tempo agachados
na dolorosa escuridão,
Ficaram se enganando,
com a cara enfiada na ignorância.
Dispararam palavras
como balas num massacre.
A Pedra conclama hoje, podem subir em mim,
Mas não escondam seus rostos.
Através da parede do mundo
Um rio canta uma bela canção,
Fique aqui do meu lado.
Cada um de vocês é um país,
Delicada e estranhamente orgulhoso de suas fronteiras,
Que no entanto são perpetuamente sitiadas e atravessadas.
Suas lutas armadas pelo lucro
Deixaram correntes de destroços
Na minha praia, colares de escombros no meu peito.
E no entanto, hoje convido-os à minha ribeira,
Desde que parem de se esmerar na guerra.
Venham, cobertos de paz, que eu cantarei as canções
Que o Criador me ensinou quando eu
E a árvore e a pedra éramos um só.
Antes que o cinismo fosse uma cicatriz sangrenta em suas testas
Num tempo em que vocês sabiam que ainda não sabiam nada.
O rio canta e continua a cantar.
Há um forte desejo de responder ao
Rio cantante e à pedra sábia.
É o que dizem os asiáticos, os hispânicos, os judeus,
os africanos, os índios americanos, os sioux,
os católicos, os muçulmanos, os franceses, os gregos,
os irlandeses, os rabinos, os padres, os xeques,
os gays, os héteros, os pregadores,
os privilegiados, os sem-teto, os professores,
Eles ouvem. Todos eles ouvem.
O discurso das árvores.
Hoje, da primeira à última das árvores, todas
Falam à humanidade. Venham a mim, ao lado do rio.
Plantem-se ao meu lado, na margem do rio.
Cada um de vocês, descendente de algum viajante
de passagem, já recebeu sua parte.
Vocês que me deram meu primeiro nome,
Vocês pawnee, apache e Sêneca,
Vocês da nação cherokee, que ficaram comigo,
e foram forçados a chafurdar no sangue,
deixando-me a serviço de outros exploradores –
enlouquecidos pela ambição, famintos pelo ouro.
Vocês, turcos, suecos, alemães, escoceses,
vocês axântis, iorubás, krus,
Comprados, vendidos, roubados, no meio de um pesadelo
rezando por um sonho.
Criem suas raízes aqui, ao meu lado
Eu sou a árvore plantada na margem do rio,
E daqui não saio.
Eu, a pedra, eu o rio, eu a árvore
Sou de vocês – suas passagens foram pagas.
Levantem o rosto, vocês precisam demais
dessa manhã brilhante que nasce.
A história, apesar da dor aguda que provoca,
não pode ser evitada, mas se for encarada com coragem
não precisa ser repetida.
Ergam os olhos
para o dia que nasce por vocês.
Deixem que
o sonho surja novamente.
Mulheres, crianças, homens,
Ponham esse sonho na palma das mãos.
Moldem-no sob a forma que vocês
mais precisam. Façam dele uma
escultura do que está dentro de vocês.
Animem os corações.
Cada hora que passa traz novas oportunidades
para novos começos.
Não se prendam para sempre
ao medo, subjugados eternamente
à brutalidade.
O horizonte se alarga,
oferecendo espaço para avançarmos à mudança.
Aqui, no pulso deste belo dia,
Vocês devem ter a coragem de
olhar para além de mim,
a pedra, o rio, a árvore, seu país.
Tanto quem é Midas, quanto quem mendiga.
Tanto vocês, quanto, então, o mastodonte.
Aqui no pulso desse novo dia
Vocês estão abençoados para olhar para longe
e também nos olhos de suas irmãs,
nos olhos de seus irmãos, de seu país
e dizer com simplicidade
com toda simplicidade
e esperança
Bom dia.
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