O Velho Relógio

EAWFWE
Foto: FMagalhães

Volto, como sempre, àquela noite em que velávamos o corpo do meu avô. Eu tinha seis anos e a sala estava cheia de adultos, parentes e amigos da família. Os espelhos da casa cobertos com lençóis, as almofadas retiradas dos sofás e poltronas, os cânticos lamentosos do Kadish, que os mais velhos alternavam-se, de manhãzinha e à primeira estrela ao fim da tarde, na condução das preces fúnebres.

Num canto escondido eu observava, sem ser observado, o defunto, da cintura até os pés. A cabeça, o tronco e os braços eu não podia enxergar. Estavam estrategicamente localizados atrás do grande relógio de pêndulo. Incansável carrilhão que continua marcando o ritmo, lúcido e comedido, do tempo e da vida. Movido à corda, precisa ser alimentado manualmente a cada 30 dias. Eu fechava os olhos e o meu avô aparecia vivo ensinando-me uma jogada de xadrez, abria-os e o velho relógio ainda estava ali encobrindo a visão do meio-corpo. Uma coluna grega sustentando a casa, Deus Cronos fincado no meio da sala. Batidas de uma trilha sonora que,  hoje eu sei, acompanhariam-me para sempre. Tic tac tic tac tic.

Muitos anos depois chegou a noite da minha avó. No hospital retirei-lhe o relógio do seu pulso inchado. Os enfermeiros lutavam para pegar o fiapo de veia que lhe restava. Saí do quarto e minhas pernas levaram-me até o fim do corredor. Voltei e vi um dublê pálido dela própria. Sem pensar nem ainda sentir, parei imediatamente a engrenagem dos ponteiros, que marcavam 2:30 da madrugada.Repetia-se a cena do Kadish.

Mas, desde Heráclito, nunca atravesso duas vezes o mesmo rio.  O rio é outro porque são outras as águas que nele fluem. Eu sou outro porque as almas também fluem. Havia mais uma importante diferença na cenografia. O velho carrilhão estava parado. Fazia alguns meses que ela não tinha forças, nem se lembrava mais de alimentar sua corda. Seus grandes ponteiros marcavam exatamente 2:30.

Abri a longa porta de vidro e girei a chave até ouvir novamente a cadência inconfundível do seu pêndulo. Fechei os olhos e, embalado pela  música de Leonard Cohen que imediatamente ouvia dentro da cabeça (a mágica de revelar a beleza na perplexidade ou desolação), coloquei-me a observar, com o distanciamento da testemunha, aquilo que se passava com o meu corpo, as nuances da respiração e a dança dos meus pensamentos. E eu sinceramente conseguia. E, desde então, ainda consigo, a cada lágrima transpirada de alegria ou de tristeza. Tic tac tic tac tic.

As boas perguntas precisam de um tempo de cozimento, elas não vem do nada, de graça. Hoje pela manhã coloquei-me em debate: Quem é essa testemunha? Qual camada, instância, que dentro de mim, me observa? Provavelmente estará relacionada (apenas um palpite), à noite, ao recolhimento e ao silêncio. À penumbra da alma e ao sono profundo. O desapego por tudo e a sensualidade da cabeça com o travesseiro devem guardar todos os sonhos do mundo. Tic tac.


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