Não ia escrever sobre Barbara Heliodora. Mas no fim do dia de sua morte, aos 91 anos, ela insiste em me trazer para o computador. Minha resistência explica-se pelo tipo de convivência que tive com ela. Bem diferente dos leitores ou dos colegas do teatro. Não era uma relação profissional. Era uma relação de aluno para professora. Durante mais de cinco anos, aproveitei muito de seu envelhecimento ativíssimo e de seu conhecimento infinito. Sua classe social, sua geração, sua dedicação e amor aos livros a fizeram uma intelectual brasileira de nível internacional.
De 2001 a 2006, frequentei seu grupo de discussão sobre literatura shakespeariana, em São Paulo. Barbara, naquela época com 77 anos, desembarcava um sábado por mês em Congonhas, logo cedo, e invadia a sala onde nos reuníamos para ler o bardo arrastando sua mala e sempre com uma tirada sobre sua idade. Em nossa última conversa, por telefone, ela repetia a frase bem-humorada: “Fora o estado avançado de putrefação, estou bem e vou lançar outro livro”. Eu sabia que lá vinha mais Skakespeare, teatro grego, críticas.
Como sabia de meu interesse pelo envelhecimento, ela mandava, sem pena: “Escreve aí que envelhecer é uma merda”. Que nada. Os últimos anos foram duros com ela. Mas seu exemplo é excelente. Diz um pouco do Brasil, do ponto de vista de que poucos têm a chance de adquirir seu conhecimento. Por outro lado, nos ensina que só a Educação pode garantir mais possibilidades de trabalho quando o corpo avisa sobre o avanço de suas limitações. Mas Barbara jamais esmoreceu. “Eu preciso ganhar a vida até hoje e só sei fazer isso”. Fazia também por amor e, principalmente, por escolha.
Sobre a velhice, conversamos à época da estreia de Paulo Autran em sua última peça, “O avarento”. Barbara me confidenciou que assistiria, mas não queria escrever sobre a peça. Era duro para ela e para ele. “É difícil ver sua geração envelhecer”, me disse. Depois de ver a montagem me enviou um email. “Paulo não tem mais fôlego para o grito do avarento!” Como se sabe, o personagem de Molière precisa mostrar toda a sua indignação quando seu dinheiro é roubado. Mas Barbara ficou feliz em ter a oportunidade de escrever sobre os figurinos das 219 peças de sua amiga Kalma Murtinho, em livro da Funarte, em 2013. “Aos 93 anos, ela continua trabalhando!”, me escreveu.
Filha de Marcos Carneiro de Mendonça, o primeiro goleiro do Brasil e fundador do Fluminense, nossa paixão em comum, Barbara adorava futebol e era tão severa com o seu time quanto com os maus atores. “O Fluminense é uma praga com time pequeno, será possível? Parece que tem prazer em perder para time pequeno!”. Ou escrevia feliz quando o nosso Nense ganhava e colocava no assunto do email: “saudações tricolores”.
Todos os livros de Barbara são obrigatórios para quem encara o teatro com honestidade intelectual e seriedade. Seu “A expressão dramática do homem político em Shakespeare” (sua tese de doutorado originalmente publicada pela Paz & Terra) é também obrigatório para a Ciência Política. É ainda uma referência bibliográfica em inúmeras universidades na Europa e citado por grandes estudiosos da obra de Shakespeare. O que ela, porém, gostava muito era de produzir pequenos livros, de iniciação à obra do seu autor preferido. Foram vários livro para adolescentes com resumos das peças. Era a Barbara professora, compromissada com as futuras gerações e pouco retratada diante da preferência da imprensa de sempre explorar as polêmicas de uma crítica conservadora, ranzinza ou ultrapassada. Barbara lidava bem com tudo isso. “Quer fazer realismo, faça direito e a gente elogia. Quer fazer vanguarda, faça direito. Não venha me enganar, me dizer que tudo que é feio é sério”.
Outra coisa que Barbara detestava eram as cópias. Certa vez comentei com ela a montagem de “Tristão de Atenas” e, ingênuo, elogiei o cenário. “Se é como você está me contando é uma reprodução deslavada” e citou a montagem, o ano, o teatro e o diretor. Depois fui pesquisar e conferia. “O problema é que a velha aqui pode ser chata, mas ela já viu coisa para caramba e então me enganar fica mais difícil”. Era uma memória prodigiosa aos 90 anos. Lia muito policial, sua mania nas madrugadas de insônia. Fazia palavras-cruzadas em inglês nos aeroportos. “Mas as americanas, as inglesas são chatas porque são charadas”. E discutia política como hoje poucos conseguiriam acompanhar em meio à pobreza de argumentos. Quando criticava o PT, Barbara não citava apenas o noticiário, mas Montaigne, Montesquieu e Rousseau.
Barbara virava o rosto para o realismo. Queria um teatro mais imaginativo. “O realismo nos empobreceu como espectadores”. Defendia o “encantamento” da plateia. Uma vez me contou que Milton Gonçalves queria uma tradução dela para montar Shakespeare. “Qual?”, ela perguntou. “Otelo”, ele teria respondido. “Ah, vá se catar, seja mais original”. Lhe irritava também as soluções fáceis. “O autor quando coloca uma carta é porque não soube resolver”.
Shakespeare era sua paixão. Mas Barbara adorava muitos autores brasileiros. O “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, era a única peça brasileira realmente universal, na opinião dela. Pode ser encenada em qualquer tempo e espaço. Sua outra obsessão era Nelson Rodrigues. Há bem pouco tempo, me disse que queria fazer uma “concordance” [na expressão dela] da obra do autor de “Vestido de noiva”. “Assim que me livrar do que estou fazendo no momento”, me escreveu. Nem seu se o projeto vingou. Se não fosse esse, seria outro, pois Barbara, encerrou o email com o pedido de desculpas: “Agora tenho de acabar para trabalhar! Ciao! Much love. Barbara.”
*Jorge Félix é especialista em economia da longevidade, jornalista, professor e mestre em Economia Política pela PUC-SP. É autor do livro “Viver Muito” (Ed. Leya). www.economiadalongevidade.com.br
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