Diário da cultura: o testamento de Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes. Foto: Reprodução/viniciusdemoraes.com.br
Vinicius de Moraes. Foto: Reprodução/viniciusdemoraes.com.br

Depois de uma crise hipertensiva e temendo um derrame que o impossibilitaria de escrever – Vinicius de Moraes redigiu um testamento, na madrugada de 5 de setembro de 1969 em laudas do Jornal do Brasil para a mulher, Maria Christina Gurjão, no qual fez uma lista de bens, credores, fontes pagadoras, caloteiros e contas bancárias e deu instruções de como tudo seu deveria sr distribuído e – mais importante que tudo – suplica para não ser enterrado e sim embalsamado ou jogado no mar. Ele morreria onze anos depois, a 9 de julho de 1980.

    “Meu Testamento

    Para Maria Christina Gurjão

    Christininha


Se me sobrevier algum acidente durante a noite e, por acaso, eu morrer dormindo, tudo o que está dentro desta casa é seu, os dólares inclusive, bem como o automóvel, que lhe deixo. É esta a minha vontade, e se alguém se interpuser, maldito seja, pois não o considero nem irmão nem filho.

O resto é de meus filhos e de minhas irmãs Lygia e Laeticia, que se entenderão para que qualquer partilha seja feita com total espírito de justiça.

O problema dos direitos autorais deve ser estudado com o Marconi, por um advogado da confiança de meus filhos e minhas irmãs, reunidos. Lembro que o meu contrato com o Marconi termina em 1971 ou 1972 (é preciso procurar nos meus arquivos, nas pastas de música, porque está lá). Terminado este período, Lygia poderá tomar conta do assunto. É preciso pedir contas direto às minhas principais fontes pagadoras, que estão, até o término do meu contrato, sob o controle do Marconi. Elas são: A) SACEM, de Paris e o Leeds Music Corporation, de Nova York. O Tom sabe de tudo. Há também um tal Marbot, de Paris, que recolhe sobre as músicas do “Orfeu Negro”!. Está nos arquivos.

Denunciem o contrato do Marconi quando expirar o próximo período, senão se renova automaticamente.

Tenho dinheiro nos seguintes bancos: 1) Nacional de Minas Gerais (Agência Lido e Ipanema); 2) Crédito Real de Minas Gerais ali na Agência do Leblon; 3) Bank of London & South América, de Paris (Letícia está a par de tudo e pode escrever para lá, depois do assunto dos herdeiros ficar resolvido); 4) Chemical Bank (não me lembro agora o nome todo) – Letícia também está a par de tudo; 5) Um banco em Los Angeles, cuja conta ficou a cargo de Ray Gilbert – que é um larápio, o Tomzinho sabe o meio de mandar o Ray recolher o dinheiro – é mixaria; 6) o próprio Ray Gilbert, que é fonte pagadora através de sua editora (que roubou ao Tom e ao Aloísio); 8) O Serginho Mendes, que tem algumas músicas minhas gravadas – o Marconi sabe. Ele e Lygia em conjunto podem resolver o assunto com o advogado.

É preciso que seja feito um levantamento completo do meu repertório, e o assunto seja tratado com meus parceiros, no sentido de serem protegidos os direitos de meus filhos (há um que vai nascer em março, com você), depois de minha morte. Vários de meus parceiros têm editoras próprias, usufruindo, assim, direitos extraordinários (porque são editores) sôbre composições de autoria deles comigo. É preciso estudar com um advogado, e com os próprios parceiros, que são meus amigos e – penso eu – não vão criar dificuldades que meus herdeiros entrem de posse do que lhes é de direito depois da minha morte e da deles, em posição de igualdade com os herdeiros de meus parceiros.

O governo de Minas Gerais me deve 22 milhões e pouco de cruzeiros velhos. O Murilo Rubião está cuidando do assunto, e Lyginha pode receber, com procuração minha e Helena do Otto pode intervir junto ao pai (o Israel Pinheiro) para apressar o assunto. Esse dinheiro deve ser aplicado num investimento seguro, de maneira a que se multiplique e possa render juros que gostaria fossem assim distribuídos: 1) Susana e Tuca; 2) Pedrinho e Verinha e o filho que vai nascer (meu netinho); 3) Georgiana; Luciana, Christina e meu novo herdeiro, que deve nascer em março.

 Outra fonte pagadora minha é a Editora Sabiá – falem com o Braga e com Fernando; e o Aguilar – falem com o Antonio Hencur.
  
Em Buenos Aires tenho “Para uma menina com uma flor” publicado por uma editora “de la Flor” ou qualquer coisa assim – procurem nas minhas pastas de arquivo. Em Portugal tenho: 1) o disco com a Amália; 2) o disco de poesias; 3) a regravação do meu disco de poesias feito pelo Irineu; 4) o livro de poesias chamado “O Poeta apresenta o Poeta”. Você,. Christininha, pode escrever ao Antonio sobre isso – parte desse dinheiro (US$200,00) são dele. O resto ele pode mandar para você.

Na Itália há os direitos autorais sobre o meu disco que vai sair, produzido pelo Bardotti. O Chico pode escrever para êle.

Seria interessante alguém percorrer, com procuração da Lygia, algum dia, todas as sociedades arrecadadoras do mundo para verificar minhas prestações de contas.

 O meu fonomecânico é pago pela sociedade em Paris filiada à SACEM. Esqueci o novo nome. O Marconi não tem mais a ver nem com meu fonomecânico nem com o direito pago pela SACEM de Paris e pela SBACEM, SBAT e etc. – a coligação aqui. Sempre me foi pago diretamente em Paris. Acho que o Marconi fez alguma falcatrua com eles, pois o dito é (ou era) o representante aqui. Ele só cobra os 10% sobre o recolhimento das fábricas e das músicas que ele negociou com o Chiantia e o Sergio Mendes – e isso até a data do término do nosso contrato (acho que é 1972) quando ~este deve ser denunciado, senão ele fica mamando nessa vaca leiteira até o fim da vida, e o Mauricio Marconi depois.

A tradução do Orfeu Negro, Christininha, você sabe onde está. Gostaria que você falasse com o Tom e mandasse aquela carta minha junto com a tradução para o Albert da Silva. Você fica por mim autorizada a negociar, junto com o Tom, tudo isso. Gostaria que os meus herdeiros diretos (os filhos) caso o “musical” pegasse e desse muito dinheiro, que pusessem você na participação dos lucros, junto com eles, em partes iguais – no sentido de defender o futuro de nosso novo filho, que você está gerando. Acho que Susana, Pedrinho, Georgiana e Luciana entenderão isso muito bem. Esta é a minha vontade. 

Meus papéis, gostaria que fossem entregues ao Rubem e Fernando, para ver o que se pode aproveitar. Todos os originais antigos devem ser preservados para meus herdeiros. Poemas antigos não publicados e inacabados, sobretudo os da primeira fase, devem ser queimados. Há uma pasta de poemas inacabados atuais, aqui em casa, que eu ia mexer para fazer o novo livro “O Dever e o Haver” onde talvez haja alguma coisa a aproveitar. O Braga saberá dizer. Há bons poemas do “Roteiro Lírico e Sentimental… do Rio de Janeiro” numa pasta especial.
O primo do Scliar que publicou a edição “fac-simile” do “Orfeu da Conceição”, em São Paulo, ainda não me pagou. Falem com o Scliar.

O Acosta, antigo sócio do Rubem e do Fernando também ainda não prestou contas do que lhe ficou da edição de “Para uma Menina com uma Flor”. Mandem brasa.

A Susana e Pedrinho recomendo que, de acordo com Georgiana e Luciana tomem conta dos interesses de Christina e nosso filho que vai nascer. Se entrar muito tutu de tudo o que eu fiz, gostaria que Christina tivesse uma pensão mensal de pelo menos NCr$1.000 por mês.

Nelita tem meus quadros de Ivan Marquetti (todos menos um, que ela sabe qual é) e um Volpi, 1 desenho da Maria Helena Vieira da Silva, 1 do Di Cavalcante (é de Ovalle) que quero de volta. Ela me prometeu que daria. Se ela não quiser dar, podem agir judicialmente (mas somente com relação aos especificados aqui! – faço questão de dizer que todo o resto pertence a ela, foi dado por mim e quero que fique em seu poder).

 No fim deste setembro o Jornal do Brasil me deverá dois meses de colaborações. Até agora foi um mês. Fairplay me deve um artigo sobre a Florinda Bulcão (NCr$500,00).

Meus dois netinhos serão protegidos, no tocante ao que deixo, pelos pais – é claro. Meu novo filho com você, Christininha querida, entra no rol de meus herdeiros. Se Lyginha, por implicância, não quiser registrá-lo no meu nome (pois só ela tem procuração minha) a declaração fica feita aqui: a criança é filho (ou filha) meu, e deverá ser registrado com o meu sobrenome e paternidade, e gozar de todos os direitos de que gozam meus herdeiros diretos.

Protejam minhas duas irmãs, sempre, em caso de necessidade. Letícia tem cuidado de muito, mas, caso minhas coisas produzam muito dinheiro, futuramente, quero que não lhe falte nada. Peço que, no mesmo caso, abram uma conta em nome de meu irmão Helius, de modo a que ele possa adquirir, um dia, um apartamento – nem que seja pingando um pouco de cada um por mês.

Escrevo isto hoje esperando, é claro, que não aconteça nada, mas tive uma crise hipertensiva, e, se vier outra, sempre pode dar um derrame e eu perder as faculdades de falar ou raciocinar, no sentido do que está exposto aqui. Se eu ficar inválido a ponto de não poder me mover e pensar, matem-me por favor! Eu faria o mesmo por vocês, palavra de pai, irmão e marido e avô. E até de sogro. Uma injeçãozinha maneira não faz mal a ninguém numa hora dessas. Nem cego. Tenho horror a ficar cego, mesmo podendo escrever o “Paraíso perdido”, como fez Milton. Mas eu não sou Milton nem nada.

E esta é a minha última vontade que espero seja, para vocês, sagrada. Não me enterrem. Se houver alguma coisa “do outro lado” – no que até agora não consigo acreditar – eu amaldiçoarei vocês todos se não fizerem esta última vontade minha. Peguem meu corpo, joguem-no ao mar, lá na Avenida Niemeyer, com dois pesos nos pés. Adoraria ser comida de peixe, como o foi Hart Crane. Ou queimem-me aí num mato qualquer, com gasolina. Se não tiverem coragem de fazer isso, contratem um marginal que o tenha, mediante bom dinheiro. 

MAS NÃO ME ENTERREM, PELO AMOR QUE VOCÊS TÊM POR MIM. Em último caso – mas esta não é a minha vontade – mandem proceder a um embalsamamento e só me enterrem depois de 48 horas de embalsamado. Peçam isso ao Negrão como um último favor.

Gostaria de ser velado, nesse caso, pelos estudantes, e que meu coração lhes fosse dado. E de ser enterrado (depois do embalsamamento e das 48 horas) ao som das escolas de samba e dos choros de Pixinguinha. Mas – insisto – prefiro ser jogado ao mar ou cremado. Talvez o Abreu Sodré autorize minha cremação em São Paulo. Depois vocês trariam minhas cinzas para cá de volta. Gostaria que elas ficassem com Lygia. 

E que houvesse alegria e não tristeza. Eu fiz o que pude.
Assino isto em perfeita consciência, nesta madrugada de 5 de setembro de 1969. Peço às autoridades para colaborarem com meus últimos pedidos.
Eu te amo!
Vinicius de Moraes
(Assina)

Christininha
Eu amo você e morro de pena, caso eu morrer, de não ver o novo Vinicius de Moraes nascer. Mas ainda preferiria Rodrigo em lembrança do amigo querido que foi antes de mim.
Ciao!
Vinicius”


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