Me senti de novo nos 70. A Casa de Portugal, em São Paulo, estava abarrotada. Um local habitualmente destinado a bailes e festas ficou tomado, na tarde fria e chuvosa de sábado (21) por uma pequena multidão convocada pelo deputado Paulo Teixeira (PT) para um ato de repúdio ao golpe denominado “Grito pela democracia – a luta continua”. A frase que foi um dos motes da minha juventude.
A diferença em relação aos anos 70, quando quem se reunia eram pessoas da classe média é que a maioria acomodada nas cadeiras brancas, de plástico, era de gente pobre, mal agasalhada, chinelo no pé, gente da periferia, dos movimentos de moradia, estudantes secundaristas, mulheres, brancos, negros, representantes dos movimentos LGBT, todos esses que, em apenas dez dias do governo provisório Michel Temer perderam todos os direitos conquistados nos dois últimos governos, de Lula e Dilma. E que sabem que as perdas apenas começaram. Agitavam bandeiras, gritavam “Fora Temer! Volta Dilma!”, “Ai, ai, ai, empurra o Temer que ele cai”, cantavam um reagge chamado “A luta continua”, vaiavam personagens como José Serra, outrora militante contra o golpe de 64, agora tido como traidor e mostravam disposição e coragem de resistir.
O clima lembrou o do tempo dos generais de cinco estrelas e óculos escuros, quando, unidos, intelectuais, artistas, jornalistas, advogados, cientistas, políticos enfrentaram com galhardia, e sem armas, os algozes que sufocavam os brasileiros.
Muitos deles estavam lá, agora mais calvos, cabelos de algodão, rugas no rosto para dar, no entanto, o mesmo recado: é preciso ir às ruas para evitar a continuação das aberrações consumadas desde que o governo provisório se instalou, com ares de definitivo se não quisermos voltar aos anos lúgubres da ditadura militar: Margarida Genevois, presidente da Comissão Justiça e Paz, que denunciou prisões e torturas, desaparecimentos e assassinatos, evitando que eles prosseguissem; as professoras Marilena Chauí e Maria Vitoria Benevides, sempre coerentes; o jurista Fábio Konder Comparato; o cientista número 1 do Brasil, Miguel Nicolelis; o escritor best-seller Fernando Morais; a cartunista Laerte; os jornalistas Audálio Dantas, José Trajano, Luis Nassif e Chico Malfitani; o homem de teatro Zé Celso Martinez Corrêa; o ídolo de todos, Eduardo Suplicy que levantou a plateia ao chegar; Maria Estela, que falou em nome do marido, o prefeito Fernando Haddad, que não pôde vir por ser o dia da “Virada Cultural”. E muitos outros.
Conhecido como jornalista esportivo, torcedor do “Ameriquinha”, mas apaixonado brizolista desde sempre, Trajano atacou a mídia, que, para variar não estava lá para cobrir o evento, principalmente “a cretina e safada Rede Globo”!
“Depois de ver aquele espetáculo tragicômico, cruel no Congresso Nacional” disse ele “eu desanimei. Mas depois de ver a nossa gente saindo às ruas, ocupando os espaços, Brasil afora, me animei de novo. E essa vai ser a nossa vitória! Nessas horas eu me lembro muito de dois personagens importantes da história do Brasil que fizeram muito a minha cabeça. E que em 1961 não deixaram o golpe militar existir. O golpe só saiu em 64. Tenho muitas saudades de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Só que eles não estão mais aqui. Quem está aqui agora somos nós. Estão saindo notícias de que o presidente interino, esse safado do Michel Temer vai voltar atrás, mais uma vez, e recriar o Ministério da Cultura. Mas não pensem eles que isso nos satisfaz! Porque tudo que vier desse governo ilegítimo não terá o nosso respaldo”!
Fernando Morais, mais redondo que nos anos de chumbo, cinco milhões de livros vendidos em todo o mundo também bateu nessa tecla, conclamando enfaticamente a CUT, que acena com uma aproximação, a não negociar absolutamente nada com Temer, para não legitimar esse governo e, num gesto dramático, ele, que durante muitos anos militou no PMDB rasgou, publicamente, a sua ficha de filiação ao partido.
Aplaudidíssima e recebida como pop star, sob o coro “Ma-ri-le-na! Ma-ri-le-na”! Marilena Chauí declarou que “o que se passou no Congresso Nacional – alguns disseram que foi grotesco – foi uma infâmia, uma injúria, um escárnio, foi uma vergonha para a história desse país! Pertence ao campo do inominável! É aquilo que mundo afora hoje se diz a respeito da política brasileira. Um instante no qual tudo o que há de conservador, de reacionário, de fascista, que é o esgoto da política brasileira subiu à tona! Nós temos que lavar e limpar tudo isso! Estão no Congresso Nacional, pela pauta do boi, da bala e da bíblia 55 projetos de lei de desmontagem de todos os direitos conquistados. Todos! Não sobra nenhum! Ao lado disso nós temos essa coisa gigantesca que é com uma canetada golpista considerar que ele pode desmontar a Previdência Social. Que ele pode desmontar todas as secretarias de ações afirmativas. Numa semana ele desfaz o trabalho de 15 anos. Não desfaz! Ele simplesmente anula no bojo da política institucional e burocrática aquilo que nós fizemos, mas ele não pode anular aquilo que nós somos enquanto sociedade”!
O jurista Fabio Konder Comparato lembrou que “em 64 tivemos uma tragédia que custou centenas de vidas. Agora temos uma farsa. É preciso, portanto, nos preparar para denunciar a farsa, aqui e no estrangeiro. E eu quero, sobretudo, insistir num ponto. Nós não podemos ficar apenas em manifestações esporádicas e intermitentes, como essa bela manifestação. Nós temos que nos unir solidamente para lutar contra o poder abusivo que foi instalado neste país. Há duas esferas de poder. Há um poder mais aparente, como, por exemplo, daqueles que estão no proscênio do palco, como eu. Mas há um poder mais profundo, que é o dos bastidores. Esse poder dos bastidores nunca, jamais, em tempo algum foi ocupado pelo povo brasileiro. Democracia é poder soberano. E o poder soberano, entre outras coisas, é o de aprovar uma constituição. E aprovar as emendas à constituição. É o poder de eleger e destituir aqueles que foram eleitos. Nós nunca tivemos nenhum desses poderes com o povo. Nunca uma constituição foi referendada pelo povo. A constituição atual tem 90 emendas. Nenhuma delas foi submetida senão à aprovação, pelo menos à consulta popular. E como é que se tira hoje os presidentes eleitos pelo voto popular? Pelo impeachment! O processo de impeachment não tem, em nenhum momento, a participação do povo. Nós ficamos como idiotas a olhar o abuso de poder pela classe dominante”.
O deputado Paulo Teixeira disse que “foi praticado um golpe parlamentar pelo que tem de mais atrasado no parlamento brasileiro, fruto do financiamento empresarial e coordenado pelo cleptomaníaco Eduardo Cunha que hoje manda no governo de Michel Temer! Eduardo Cunha nomeia ministro; nomeou o líder de governo e numa violência e ilegalidade destituíram o Ricardo Melo presidente da EBC e da TV Brasil, que tem um mandato de quatro anos para colocar um representante do Eduardo Cunha. Nós estamos sofrendo um golpe empresarial. Dos banqueiros, da Fiesp e da área empresarial. Com fortes ligações externas com os Estados Unidos. Nós estamos sofrendo um golpe midiático. A Rede Globo militou por esse golpe. Convocou os atos públicos. E participou ativamente desse golpe. E esse golpe tem uma natureza judicial a ponto de um juiz de primeiro grau quebrar o sigilo bancário da presidenta da República para contribuir com o clima de desarranjo em que se transformou o Brasil. Os Estados Unidos participaram desse golpe! E o Serra quer alinhar a política externa brasileira aos Estados Unidos. E eu quero lembrar que o Michel Temer nomeou para o Gabinete de Segurança Institucional um general chamado Sergio Etchegoyen. Ele é o general mais pró-americano do exército brasileiro. O pai dele participou da ditadura militar e consta como torturador no livro “Brasil Nunca Mais”. E o avô dele ajudou a derrubar Getúlio Vargas. E é por isso que eles não podem ficar: porque não é a escolha do povo brasileiro. Eles entraram pela porta dos fundos do Palácio do Planalto e sairão pela porta dos fundos porque nós vamos falar: Fora Temer! Volta Dilma! E devolva ao povo brasileiro a sua soberania”!
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