Quando o repórter Mike Dolan recebeu uma chamada para se apresentar na sala do editor-chefe, sabia que isso significava o seu fim no emprego, e, durante todo o tempo em que subiu as escadas, só ruminava uma idéia: já não havia mais culhões no jornalismo atual. Coloque aspas no trecho que leu até aqui. É assim que começa o romance policial Mortalha não tem bolso, do escritor e roteirista americano Horace McCoy (1897-1955). Dolan conta em seguida que queria viver na época em que um jornal era um jornal e “chamava um filho-da-puta de filho-da-puta, e que fosse para o diabo!” Segundo ele, deve ter sido ótimo ser um repórter num desses jornais antigos. Não como naquele momento, explicou ele, quando o país estava cheio de pequenos editores semelhantes a William Randolph Hearst (1863-1951), magnata famoso pela falta de escrúpulos. Estes tocavam tambores e se embandeiravam em todos os jornais, diziam que “Mussolini era um novo César (só que com aviões e gases venenosos) e Hitler era outro Frederico, o Grande (só que com tanques e piromaníacos homossexuais), e vendendo patriotismo com descontos e não ligando para mais nada a não ser os números da circulação.”
Sua ira prossegue. “Esses bastardos da imprensa marrom”, vociferou Dolan, entrando na sala de Thomas, o editor-chefe. “De onde veio essa matéria?”, já foi perguntando Thomas, com duas laudas datilografadas nas mãos. “Está tudo certo”, disse Dolan. “Essa é uma matéria que não pode ser desmentida”, acrescentou. “Não foi isso que perguntei. Perguntei onde você conseguiu a matéria”, questionou Thomas. “Consegui anteontem. No último jogo do campeonato de beisebol. Por quê?” “Parece bastante fantástica”, disse o chefe. Dolan pegou a deixa: “Ela não só parece bastante fantástica, ela é bastante fantástica! Quando um clube, numa bola decisiva do campeonato, deliberadamente joga errado em benefício de uns poucos apostadores, isso é o que você chama de matéria fantástica. Suponho que você vai jogar fora também essa matéria.” O editor respondeu: “Vou, mas essa não é a única razão pela qual mandei chamar você. Esqueça a matéria. O departamento empresarial…”, continuou ele. “Um minuto”, interrompeu Dolan. “Você não pode esquecer uma coisa como essa. Caralho, o time pifou de propósito. Todo mundo que assistiu ao jogo viu que eles estavam na gaveta. Não foram nem espertos o suficiente para esconder o que faziam. Além disso, essa matéria não é exclusividade nossa. Os outros jornais também a têm – vão usá-la esta tarde. Temos de nos proteger.”
A descrição acima do livro de McCoy é fundamental para mostrar seu caráter explosivo que marcou a história da literatura americana – apesar de pouco conhecida no Brasil. Na América gloriosa, mas em depressão que antecedeu à nação próspera da guerra fria que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), apesar de pintada como perfeita por Hollywood para o mundo, escondia um dos seus lados podres: a corrupção na imprensa e seu controle por grupos criminosos. Um romance corajoso, direto como uma grande luta de boxe, bem escrito e devastador sobre a moral e a hipocrisia num país que tentava se maquiar e reinventar o tempo todo em nome de uma ideologia – a democracia capitalista. Com diálogos crus e arrumados em períodos longos, Mortalha não tem bolso se mantém como uma obra atual e desafiadora. Mudaram os tempos, o comunismo morreu, mas a corrupção da imprensa e dos políticos e a força dos cartéis do crime organizado apenas trocaram de figurino. Com muito de autobiográfico, o discurso de McCoy se dá pelo repórter idealista que ele era, como muitos que saem das faculdades e acreditam no poder de denúncia e em uma imprensa livre. Na trama, Dolan continua a pensar assim, mesmo depois de se demitir da grande imprensa e se mudar para uma pequena cidade americana. Ali, monta seu próprio jornal e enfrenta a corrupção generalizada que se faz presente nas relações entre a polícia e o poder, grupos neofascistas e imprensa marrom.
A primeira vez que circulou no Brasil, na década de 1940, em edição de bolso importada de Portugal, Mortalha não tem bolso tinha o título de O Pão da Mentira – Um jornalista contra a corrupção de uma cidade. Escrito em 1937, tem uma linguagem ágil e cortante, com diálogos vivos e intensos que McCoy trouxe não só da sua experiência – frustrante ao que parece – como jornalista, mas, também, de sua bem sucedida carreira de roteirista de cinema. Na verdade, foi uma soma de muitos outros trabalhos que desempenhou desde os doze anos de idade, quando trabalhou como jornaleiro; mais tarde serviu um ano e meio na França, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na volta, foi caixeiro-viajante, motorista de táxi, repórter e editor de esportes e guarda-costas de político, o que lhe deu uma visão privilegiada dos bastidores e da corrupção que circulava por ali. Trabalhou também como leão-de-chácara em concursos de dança, tão populares na época da Depressão americana – tema de sua obra-prima, A noite dos desesperados, escrito em 1935 e filmado por Sidney Pollack em 1969, com Jane Fonda. Horace McCoy seria considerado um dos maiores escritores americanos do século XX e Mortalha não tem bolso é um bom exemplo disso: um ato de denúncia e de indignação, que ele levou por toda a vida.
Única edição em português:
Sá Editora, 2002
Deixe um comentário