Difícil entender porque A Estrada, de Jack London (1876-1916), lançado originalmente em 1907, só ganhou a primeira edição brasileira 101 anos depois, em 2008 – pela editora Boitempo. É uma obra singular entre os romances do cultuado escritor americano, mais conhecido por ambientar suas tramas nos mares ou em meio à natureza, em desertos frios e selvagens. Nesse volume, seu universo é urbano e pode ser visto como um retrato sociológico único e precioso para se conhecer a América da última década do século XIX, quando os EUA eram ainda uma nação em formação, abarrotada de imigrantes, muita miséria e leis que muitas vezes funcionavam apenas para os mais fortes.
O livro, aliás, rendeu o filme estonteante, O Imperador do Norte (1973), com Ernest Bornaigne e Lee Marvin – o primeiro, condutor do trem, está disposto a matar qualquer vagabundo que tente viajar clandestinamente em seu trem. Marvin, legendário errante, desafia que irá tentar a façanha e que sairá bem sucedido. Em A Estrada, o protagonista é um jovem andarilho – o próprio London – que viaja como passageiro clandestino em trens de carga em longas viagens, sem perspectivas, apenas em busca da próxima refeição, e relembra tipos que conheceu pelo caminho, ao mesmo tempo em narra suas próprias experiências e percepções. Ele acaba por fazer um guia para quem quer se aventurar dessa forma. “Exceto em caso de acidentes, um bom vagabundo, sendo jovem e ágil, pode viajar como um clandestino no trem, apesar de todos os esforços da tripulação para ‘expulsa-lo’ – considerando, é claro, que seja à noite”.
London retrata os EUA devastados pela crise econômica recessiva de 1894, hoje tão pouco lembrada – na verdade, totalmente esquecida –, assolados pelo desemprego e habitados por hordas de famintos que perambulavam por ruas, estradas e cidades. O período ficou conhecido como a Primeira Grande Depressão e deixou um sexto dos trabalhadores sem ocupação e um bom número em subempregos. A ponto de uma marcha, organizada pelo “General Coxey”, reunir dois mil famintos para cobrar medidas emergenciais do governo, em Washington. O autor se juntou aos hobos, como eram conhecidos os desocupados que vagavam pelas cidades, e tomou a estrada, sem ter um destino certo, a se somar ao exército dos miseráveis que andavam como zumbis, famintos e imundos.
O nome verdadeiro de London era John Griffith Chaney – tinha 18 anos na época em que se tornou andarilho. Ele nasceu em São Francisco e teve uma infância pobre. Obrigado a abandonar os estudos na adolescência para trabalhar, aos catorze anos já cumpria jornadas de mais de dez horas diárias em fábricas. Quatro anos depois, cansado da exploração, resolveu percorrer o país de trem, clandestinamente. “Talvez o maior encanto da vida de vagabundo seja a ausência de monotonia”, escreveu ele. “No Mundo da vadiagem, a face da vida é versátil – uma fantasmagoria em constante mutação, na qual o impossível acontece e o inesperado surge a cada curva da estrada”. No retorno, achou que tinha boas histórias para contar e decidiu se tornar escritor. O primeiro de uma série de livros veio em 1900, aos 24 anos, O Chamado da Selva. Esses e os demais sempre teriam êxito de público.
O escritor nunca abandonaria o hábito de viajar e trabalhou inclusive como correspondente de guerra. Depois de enfrentar graves problemas de saúde, morreu precocemente, aos quarenta anos, por overdose de medicamentos. O personagem de London, assim como ele, viajou entre as ferragens dos trens, passou fome, dormiu ao relento, foi agredido, humilhado, roubado e preso por vadiagem. Mas também enganou, usurpou e, quando se somou ao exército dos desafortunados, não hesitou em usar de artimanhas para sair em vantagem. Mesmo assim, apesar da miséria que o cercava, fica claro que se tratava de uma opção, de deixar fluir o espírito de liberdade e libertário desses homens, que assim escolheram viver.
A Estrada é uma celebração, uma apologia à vida de andarilho. O próprio escritor observou, em texto citado no livro: “De vez em quando, em jornais, revistas e em enciclopédias biográficas, leio esboços da minha vida nos quais, em frases polidas, dizem que foi para estudar sociologia que me tornei um vagabundo. É algo muito gentil e perspicaz da parte dos biógrafos, mas impreciso. Tornei-me um vadio por causa da vontade de viver dentro de mim, do desejo de aventura que corria em meu sangue e não me deixava descansar”. Nada mais beatnik, portanto. Embora seja uma obra inspirada nas aventuras vividas por London, muito da história foi recriada, com elementos dramáticos que procuraram mostrar a violência como esses seres errantes eram tratados e a falta de perspectivas. Tudo dosado na medida certa, sem excessos de vitimização.
A narrativa é um exemplo acabado do estilo seco, mordaz e contundente que influenciaria, anos mais tarde, escritores americanos de caráter proletário, como John Dos Passos (1896-1970) e Ernest Hemingway (1899-1961) e os autores da chamada Geração Beatnik, como Jack Kerouac (1922-1969) e Allen Ginsberg (1926-1997). Para ele, a sociologia em seu trabalho foi algo meramente acidental. “Veio depois, da mesma maneira que nos molhamos depois de um mergulho na água.” E explicou a origem biográfica do seu romance: “Peguei a estrada porque não conseguia ficar longe dela; porque não tinha um tostão no bolso para pagar por uma passagem de trem; porque não queria fazer a mesma coisa a vida inteira; porque… ora, apenas porque era mais fácil do que não me aventurar.”
O volume foi divido em nove capítulos ou contos em que relembra os sete meses em que viveu na estrada em busca de liberdade, aventura e alguma oportunidade. Passou por experiências que seriam decisivas na sua formação de escritor e na rejeição à moral burguesa e ao capitalismo que desenvolveu desde então. Em sua narrativa aparecem conflitos e críticas ao individualismo, da defesa da vida selvagem e do engajamento por uma causa coletiva, social. A Estrada evidencia a densidade de personagens do submundo que povoariam sua obra, assim como a paixão pelo extraordinário. A Estrada inspirou, assumidamente, ainda, George Orwell (1903-1950) em Na pior em Paris e em Londres. Um clássico de um dos principais cronistas sociais do século XX.
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