[100 de 100] Caminhos suicidas do pós-tudo, segundo Irvine Welsh

                                       

100Na gíria escocesa da periferia de Edimburgo, capital da Escócia, o termo “trainspotting” significa “uma atividade sem sentido” ou algo parecido com “perda total de tempo”. E ainda pode ser traduzido como “conferindo os trens”. “Trainspotting” é, também, o título do primeiro romance do escritor e roteirista escocês Irvine Welsh, publicado em 1993 e transformado em cult principalmente graças ao filme homônimo do diretor Danny Boyle, lançado em 1996. Sua estética para tratar visual e tematicamente a violência entre os jovens no Reino Unido fez tanto sucesso que transformou Welsh em um dos autores mais conhecidos de sua geração, quando o império da Rainha Elizabeth gerou vários autores best-sellers, como Nick Hornby, Alain de Botton e o outsider Will Self, por exemplo. Intraduzível no sentido que buscou o escritor, o nome do livro pretende dar uma dimensão de vazio, de desocupação, de vagabundagem a um grupo de amigos jovens de Edimburgo, todos desocupados e violentos, que preenchem seu tempo em pubs, assistindo jogos de futebol pela TV e, em especial, drogando-se com heroína. 

Essa é a forma que os protagonistas encontraram para dar sentido a uma existência banal e sem grandes perspectivas que levam, sem qualquer interesse em sair daquele mundinho medíocre em que nasceram e cresceram. Ao estilo visceral e punk da década de 1970 de ver a vida, a sociedade e o poder, o livro apresenta uma narrativa intensa, de caráter subversivo. O ex-bad boy Welsh critica os valores fundamentais de felicidade da família de classe média ocidental, principalmente do Primeiro Mundo. Embora a trama mostrada no filme aconteça em meio à eclosão da música tecno nos anos de 1990, a história original se passa no que se poderia chamar de ressaca punk dos anos de 1980, ao explorar jovens atolados em drogas pesadas e sem qualquer motivação ideológica para questionar o sistema e as instituições, apesar de adotarem postura de certo modo contestadora do que acontecia à sua volta. Isso faz com que “Trainspotting” seja aquele tipo de livro que marca uma geração. 

Além de uma trama inesquecível e chocante, sustenta-se principalmente pela intensidade da construção de seus personagens. O livro é dividido em sete partes. Desde o começo se percebe que o foco são usuários de heroína que sentem suas vidas definharem ainda muito jovens em um abismo sem volta por causa de bastante drogas, algum sexo e pouco rock’n’roll, nessa ordem. O líder Mark, o atrapalhado Spud, o sinistro Sick Boy e o psicopata Begbie vivem quase em constante delírio na relação entre eles mesmos e com tudo e todos à sua volta.  Na rotina de desocupados e baderneiros, eles não estão muito interessados em dar bom exemplo na vida para suas famílias. Desdenham de emprego com carteira assinada ou o desejo classe média de comprar uma casa de dois andares em uma tranquila rua arborizada. Muito menos ter uma moderna cafeteira de sachês para servir os amigos ou lavar suas roupas em uma máquina com secadora. Nada de abrir conta em banco ou passar pela catraca do metrô usando, como todo mundo, um tíquete. Não têm cartões de créditos, não usam despertador ou pagam TV a cabo. Nada de crianças na escola, carro do ano e geladeira abastecida. 

Há uma convicção na rotina e nos atos de todos eles de que a vida não precisa ter tudo isso para ser interessante, divertida e levada de modo intenso. Com essa visão destroçada do presente e do futuro, Welsh faz um panfleto político-existencialista. Ele se inspirou em personagens reais, pessoas próximas dele na juventude, para construir um livro contundente sobre o conservadorismo da sociedade britânica. Com sua crueza singular, critica o modelo imposto aos jovens que os empurra a uma existência  entediante, onde o maior expectativa dos pais, avôs e do governo é se conseguir trabalhar em uma grande e sólida empresa, casar com uma boa moça, ter filhos e desfrutar de uma boa velhice – mesmo que, muitas vezes, obesa e depressiva. Amparado em uma peculiar ironia e sem meias palavras, ele constrói o cotidiano de jovens que, mesmo sem saber exatamente o que querem, tomam atitudes que mostram descontentamento ou mesmo a renúncia a tudo isso. Sem maiores temores sobre a repressão que tal comportamento pode trazer, preferem se perder em um mundo de contravenções e crimes graves até. E vagam pelas ruas, sem rumo, como se buscassem fugir de uma vida adulta que não faz o mínimo sentido. 

Com isso, o romance enfatiza o lado transgressor dos jovens britânicos, cujas vidas parecem só dar prazer se estão enfiados em pubs e festinhas embaladas por drogas pesadas. Como se a realidade fosse insuportável, portanto. Com uma série de variáveis, porque os personagens emprestam as próprias personalidades para nortear a narrativa que Welsh buscou. Sua estrutura é focada mais nas pessoas do que no caminho que elas percorrem em um momento intenso e arriscado de sua existência. Faz parte desse jogo bem estruturado de frases e parágrafos o leitor ser o tempo todo surpreendido por situações inesperadas, que lhe causam certo mal-estar e até desconforto. O ritmo acelerado na narrativa, marcado por uma linguagem suja e direta dá mais realismo a esse universo caótico e, muitas vezes, confuso. Ao comentar o livro, a blogueira Camilla Seifert observa que Welsh consegue extrapolar a realidade e fazer o leitor submergir – querendo ou não – no universo imperfeito e chocante de Rents, Sick Boy e companhia. “Não é nada agradável, mas a narrativa crua acaba transformando a leitura em uma verdadeira experiência de imersão no cenário proposto pelo autor”, observa ela. 

Mesmo com a modernidade impregnada em sua história, Welsh segue uma tradição literária que vem desde o século XIX, com escritores que adoravam retratar vagabundos, como em “A Estrada”, de Jack London (1876-1916), e se expandiu nos anos de 1940 a 1960, com os autores da geração beat, marcados por tipos errantes – marginais, vândalos, drogados, psicopatas, depressivos e suicidas. Como em todos eles, a biografia oficial Welsh traz uma série de traços de referências de seu mais famoso livro e o credencia a ter feito uma trama de extremo realismo por meio da vivência pessoal. Em um artigo para o jornal inglês “The Guardian”, ele contou que queria ser escritor desde a adolescência, mas não tinha a menor ideia de como transformar seu desejo em realidade. Ou seja, o que contar e de que forma. No mesmo texto, lembrou-se de uma anotação em um boletim, feito por um professor para seus pais, de que ele não ia dar em nada e não passava de um “idiota sonhador”. Mesmo assim, teve outro professor de inglês que o incentivou, ao afirmar que deveria considerar a possibilidade de escrever livros. Teve a ideia, então, de recorrer a alguns diários com anotações da adolescência e começou a lê-los. Welsh concluiu, sem muita animação, que o conteúdo poderia definir sua vida como medíocre, na melhor das hipóteses. E decidiu tirar dali uma história. 

Antes disso, no entanto, levou uma vida literalmente de delinquente. Após se formar, aos 16 anos, como técnico de engenharia eletrônica, trabalhou no conserto de aparelhos de TV, sem demorar muito tempo nos diversos empregos por onde passou. Enquanto isso, tornou-se punk, em Londres, em 1978, tocou guitarra e foi vocalista das bandas The Public Lice e Stariway 13, enquanto dava trabalho à polícia por causa de atos de vandalismo. Tanto que acabou preso no Centro Comunitário de North London. A prisão sem dúvida mudou sua vida. Depois de algumas idas e vindas entre Londres e Edimburgo, fez MBA e escreveu uma tese sobre a criação de oportunidades iguais para mulheres. Virou DJ, fez turnês de leitura ao redor do mundo, trabalhou como  promotor de eventos e produtor de housemusic, sua paixão. Entre suas leituras, ficou maravilhado com o ácido escritor e humorista inglês Evelyn Waugh (1903-1966), cujo estilo sarcástico o levou a concluir que aquele era o autor que o ajudaria a transformar sua existência medíocre em literatura. Sabia apenas que queria estabelecer um jeito próprio, bem mais perto de suas referências e seu mundo. 

O resultado foi impressionante no quesito de linguagem adotada – oral, crua, das ruas, quase incompreensível para o leitor não britânico. Tanto que não foram poucos os editores brasileiros que desistiram de adquirir seus direitos por considerar a tradução inviável. Por fim, saiu pela Rocco, em versão dos escritores Daniel Galera e Pellizzari. A de Portugal, lançada pela Relógio D’Água e lida para esta resenha, foi feita por Paulo Faria e é  muito estranha ao leitor brasileiro, pela dificuldade de entender gírias e expressões similares usadas naquele país, mesmo em português. Por esse aspecto, aliás, é rotulado como o “Laranja Mecânica” de seu tempo, em uma referência ao livro sobre gangues londrinas de Anthony Burgess (1917-1993), publicado em 1962. E, também, por tratar da delinquência juvenil de modo radical. Por tudo isso, “Trainspotting” é considerado um marco na literatura inglesa e foi eleito pela crítica um dos dez títulos que mais influenciaram os jovens leitores de seu país no final do século XX. E continua a fazê-lo na segunda década de 2000. 

O sucesso do livro estimulou Welsh a fazer duas continuações com os mesmos personagens. Primeiro, com “Porno”, em 2002, em que a história se passa uma década depois da primeira. E “Skagboys”, lançado em 2012, e que conta os eventos que precederam a trama de “Trainspotting”.

Nota do blog: 

Com este post, encerra-se a maratona de resenhas “Livros Mal-ditos”. Ao longo de 50 semanas, às terças e quintas, foram publicados 100 textos sobre obras que considero, de algum modo, transgressora. Sob diferentes aspectos, é importante ressaltar. Desde romper com o convencionalismo literário a abordar temas de caráter moral ou sexual e que, por isso, tornaram-se polêmicas ou até foram banidas.

A intenção aqui foi a mais simples e modesta possível: instigar no leitor a curiosidade em conhecer livros que eu considero realmente interessantes, como mero consumidor de literatura, ou que são reconhecidamente importantes por parte da crítica. Não foi fácil cumprir esse desafio que hoje considero quase insano. Muitos títulos tiveram de ser relidos – mais de 90 –, por causa do tempo em que isso aconteceu pela primeira vez – alguns eu tive contato na já distante década de 1980 quando, adolescente, descobri os escritores malditos publicados principalmente pela Brasiliense e L&PM.

Escolher 100 títulos e 100 autores diferentes não foi uma tarefa fácil e seguiu, principalmente, meu gosto pessoal. Portanto, é normal que haja discordância quanto à seleção ou pela ausência de determinadas obras. Para chegar a esse conjunto, no entanto, uma lista maior foi feita. Assim, relaciono a seguir os 25 volumes que considero imperdíveis e que ficaram de fora. Em nenhum sentido são menores ou inferiores. Quem quiser conferir alguns deles, não ser se arrependerá, creio:

 

1 – “Tempestade de Gelo”, de Rock Moody

2 – “Os Nus e os Mortos”, de Norman Mailer

3 – “Retrato do Artista Quando Jovem Cão”, de Dylan Thomas

4 – “Junky”, de William Burroughs

5 – “Saracoteios, Tateios e Outros Meneios”, de Camilo José Cela

6 – “Peixe Grande e Outras Histórias”, de Daniel Wallace

7 – “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, de Peter Handke

8 – “Um Estranho no Ninho”, de Ken Kesey

9 – “Seda”, de Alessandro Barico

10 – “Kafka à Beira-Mar”, de Haruki Murakami

11 – “Safra Macabra”, de King Shelter (Patrícia Galvão, Pagu)

12 – “Chuva Negra”, de Masuji Ibuse

13 – “A Mulher que Ia Contra as Portas”, de Roddy Doyle

14 – “O Retrato do Rei”, de Ana Miranda

15 – “As Catilinárias”, de Anélie Nothomb

16 – “Os Eleitos”, de Tom Wolfe

17 – “O Homem das Miniaturas”, de Virginie Lou

18 – “A Rua das Ilusões Perdidas”, de John Steinbeck

19 – “A Morte da Porta-Estandarte”, de Aníbal Machado

20 – “Nunca Te Vi, Sempre Te Amei”, de Helene Hanff

21 – “A Pesca do Salmão no Iêmen”, de Paul Torday

22 – “Os Invasores de Corpos”, de Jack Finney

23 – “O Ajudante”, de Robert Walser

24 – “O Homem no Teto”, de Jules Feiffer

25 – “Contos Cortantes”, de Breece D’J. Pacake


Comentários

4 respostas para “[100 de 100] Caminhos suicidas do pós-tudo, segundo Irvine Welsh”

  1. Gonçalo, também tenho seguido o seu blog. Sensacional. Por que não mais 200 livros malditos? Fica a sugestão. Forte abraço!

    1. Avatar de Gonçalo Junior
      Gonçalo Junior

      Ô, Dário, você quer me matar? Fazer esses 100 foi insano, meu caro. Lembrou-me aquele calvário do filme O Pagador de Promessas, lembra? Não foi fácil! Principalmente porque inventei de não repetir os autores. Mas sugiro que você busque outros livros de um autor em especial, um visionário, amigo de Kafka, o tcheco Karel Capek. Você não vai se arrepender. Grande abraço.

  2. Avatar de Ana Luisa lage
    Ana Luisa lage

    Acompanhei semanalmente as publicações. Com ótimas dicas de autores e livros, tive a oportunidade de ampliar meus conhecimentos literários. Parabéns pelo excelente trabalho! Que venham mais colunas bacanas!

    1. Avatar de Gonçalo Junior
      Gonçalo Junior

      Ana, no momento, vou descansar um pouco. Já pensei em uma coluna só com livros censurados, cujo volume é imenso no Brasil, hoje, quase sempre vetados por interesses financeiros mesquinhos dos artistas ou das famílias. O que acha?

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