Não havia como o escritor e jornalista inglês Daniel Defoe (1660-1731) descrever da própria lembrança, com tão impressionante precisão e detalhismo, a grande peste bubônica ou “peste negra” que devastou a sombria, nebulosa e imunda Londres no ano de 1665. Na ocasião, mais de metade da população da cidade morreu, vítimas da epidemia. Simplesmente porque Defoe tinha apenas cinco anos de idade. Meio século depois da tragédia, porém ele, impôs-se o desafio de recontar em forma de reportagem, como nunca se fizera até então, com minuciosa reconstituição histórica, o cataclismo londrino. O jornalista e escritor recorreu a entrevistas e relatos de livros, misturou e mexeu tudo, e publicou sua história no livro Um Diário do Ano da Peste, em 1722.
Críticos descreveram a obra – anunciada como romance – como “reportagem e ficção”, uma vez que no preciosismo do registro dos fatos, sobressaía a técnica do escritor ficcional, que o levou a criar personagens para conduzir a narrativa como protagonistas. Ao mesmo tempo, descreveu cenas reais tratadas com aspectos literários, com o ritmo indispensável de diálogos que recompõem um clima novelesco irresistível, como consta na apresentação da edição brasileira publicada pela Artes e Ofícios. A vida cotidiana de Londres – com suas divisões de classe e graves problemas de infra-estrutura básica de saneamento, pavimentação e política de higiene coletiva e pessoal – é apresenta por Defoe de maneira reveladora.
Graças a Defoe, tem-se uma aula de história sobre a interação entre as pessoas, seus hábitos de consumo, sua religiosidade etc., que certamente se perderiam no limbo do tempo. E prossegue em ritmo crescente de tensão quando essa rotina começa a ser quebrada pela chegada da peste misteriosa e implacável, de seus primeiros casos letais, das incertezas de suas causas e modos de transmissão – pelo contato humano ou por meio de insetos, roedores ou animais peçonhentos? – e tratamento. Na sua contextualização, por exemplo, sabe-se que os padeiros foram obrigados a continuar produzindo pães, enquanto proprietários eram obrigados a evacuar de suas casas, após se verificar casos de óbito, o que causou bastante polêmica. Em especial, porque os demais moradores eram obrigados a permanecer dentro do imóvel, vigiados por dois fiscais públicos.
O narrador de “Um Diário do Ano da Peste” não se limitar a relatar o pânico causado pela peste ou a rotina da cidade. Ele tece o tempo todo comentários e se posiciona criticamente quanto às ações questionáveis do poder público para conter a morte em massa e sem controle. Ele questiona, por exemplo, as medidas da prefeitura para inibir a propagação da doença, como manter a oferta de alimentos na cidade acima dos interesses e temores privados. Até que tudo caminha para o pânico e o terror coletivos, diante da impressionante quantidade de mortos que são amontoados nas calçadas e vielas, como lixo a ser recolhido. Com a medicina ainda incipiente, cada profissional de saúde sugeria um tratamento diferente. Tinha-se uma vaga noção que o contágio se dava entre indivíduos. Na verdade a peste bubônica é transmitida por meio de pulgas, geralmente encontradas em ratos, e recebe este nome devido aos “bubos” que, na verdade, são os nódulos linfáticos dos humanos que incham e ficam de uma cor negra arroxeada – daí o apelido de “peste negra”. Talvez tenha sido essa a intenção de Defoe: criar uma história de terror a partir de um fato real e grave, de grandes proporções trágicas.
Com admirável – e original – construção do texto, a obra se tornou, ao longo de quase 300 anos, o modelo de rigor descritivo que não abre mão do olhar apaixonado do repórter, sem se deixar levar e trair em defesa da verdade dos fatos. “Um dos meios livros favoritos”, observou o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez. “Entre outras razões, Defoe é um jornalista que faz o que está dizendo parecer pura fantasia. Durante muitos anos, pensei que ele havia escrito sobre a peste em Londres e a observara. Depois, descobri que o livro era um romance”, acrescentou. De credibilidade inquestionável quanto aos fatos históricos usados como base para contar a história, “Um Diário do Ano da Peste”, como lembra o tradutor E. San Martin, emprega métodos jornalísticos na ficção. Desse modo, o autor acabou por criar o primeiro modelo de narrativa objetiva, com boa parte das técnicas utilizadas na reportagem até hoje.
Poucos escritores foram tão produtivos e viveram tão intensamente quando Daniel Defoe. Ativista religioso e político, ele foi comerciante, industrial, jornalista, panfletista, espião viajante, satirista, novelista e romancista. Em tudo que se meteu, o autor da obra-prima de aventura Robinson Crusoé – , lançado em 1719 e traz um relato inesquecível e apaixonante de um náufrago que se refugia numa ilha selvagem, no retorno de uma viagem ao Brasil – empreendeu a marca da modernidade, dentro do mesmo conceito que se emprega hoje. Deixou escritos econômicos em que teorizou e defendeu a livre iniciativa e o comércio internacional sem barreiras. Discutiu também a liberdade religiosa, reforma do sistema financeiro, de ensino e penal, além da moralidade pública. É considerado o criador do jornalismo moderno e popular, cujo manual estabeleceu a busca pelo dados precisos e confiáveis e a apresentação imparcial do fato.
Com isso, Defoe definiu também o jornalismo marrom, manipulador da verdade na busca pelas vendas fáceis. Durante cerca de dez anos escreveu, editou, e publicou sozinho três edições semanais de seu próprio jornal. Defoe estabeleceu ainda o formato da novela contemporânea e foi o primeiro escritor a atingir um grande público interessado em leitura mas sem escolaridade completa. A certeza da grandiosidade de sua obra está no fato de que ele jamais saiu de moda e seus livros continuam a ser republicados, sem jamais perder sua intensidade e valor literário. “Um Diário do Ano da Peste” é um bom começo para quem quer conhecer sua obra, pois é certeza de uma leitura única e fascinante.
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