A força da obra de um autor se mede, muitas vezes, pela atualidade de suas ideias. Ou pela perenidade. Ou pela eternidade. Nem sempre isso acontece, até mesmo com os escritores que ganharam o Prêmio Nobel, consagração máxima almejada por quem se mete a escrever ficção. Tanto que alguns se perdem no limbo da história e do mercado editorial e desaparecem. “A Queda”, romance menos conhecido do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é um exemplo positivo disso. O frescor de seus conceitos e pensamentos é impressionante e curioso. E cumpre de modo preciso todos os preceitos que se estabeleceu para a escola do existencialismo. Ao mesmo tempo que aprofunda no drama dos personagens, o autor conduz o leitor para uma reflexão sobre a vida e a natureza humana. Camus era um mestre em fazer esse tipo de exercício literário, ao criar personagens fictícios intensos e atormentados , com uma visão muitas vezes pessimista sobre a fatalidade das coisas.
Ao falar sobre escravidão, o protagonista de “A Queda” observa, em tom professoral: “Todo homem tem necessidade de escravos, como de ar puro. Mandar corresponde a respirar, não tem a mesma opinião? E até os mais desfavorecidos conseguem respirar. O último da escala social ainda tem o cônjuge ou o filho. Quando é solteiro, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se, sem que alguém tenha o direito de responder. Logo depois, o mesmo narrador complementa o raciocínio: “É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se outra: nunca mais acabaria. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou um tempo para compreendermos isso”. Por fim, uma curiosidade das mais interessantes, quando o personagem explica a sua opção em não comer em restaurantes chineses: “Porque os asiáticos, quando se calam, e diante dos brancos, têm sempre um ar de desprezo. Naturalmente eles conservam este ar enquanto servem!”.
Publicado pela primeira vez em 1956, um ano antes de ele receber o Nobel, foi a última obra completa de ficção do autor. A história se passa na cidade de Amsterdam, capital holandesa, então já famosa por suas prostitutas, e começa com um diálogo entre o dono do bar México-City, o “juiz-penitente” Jean-Baptiste Clamence, advogado francês de nascimento, que puxa conversa com um compatriota desconhecido e passa a falar de sua vida e dos percalços e mudanças que o levaram àquele instante de sua existência. Há, nele, um desejo e uma necessidade quase descontrolados de ser ouvido, de desabar, de fazer uma confissão. Clamence, na prática, usa sua história para refletir sobre como a sociedade molda o comportamento do indivíduo, e chega ao extremo de compará-la à ação de “minúsculos peixes brasileiros”, numa clara referência às piranhas, cujo nome deve ter lhe fugido da memória, “que se atiram aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas mordidas rápidas, deixando apenas um esqueleto imaculado.”
O modo de narrar a história é quase um monólogo. O autor alimenta o diálogo a partir de reproduções breves do interlocutor, feitas pelo próprio personagem que fala em primeira pessoa. Sem qualquer justificativa, Clamence transforma o estranho num confidente – nem tanto, conclui-se depois, porque a confiança vem do fato de serem do mesmo país – e, assim, revela como um bem-sucedido e rico advogado de defesa parisiense, altamente respeitado por seus colegas, entra em “queda” ou declínio existencial, até chegar ao lugar onde ganha a vida modestamente – na verdade, ele busca nos seus frequentadores clientes em potencial para prestar serviços advocatícios. Entre angústias e inquietações, sob “o olhar esclarecido dos quarentões que já fizeram de tudo um pouco”, ele faz uma crítica mordaz a tudo que há de pernicioso no comportamento humano do dia a dia – a ambição, a cobiça, o egocentrismo, a vaidade, a inveja. E como um conjunto de regras e de formas de condutas sociais determinam com certa fatalidade que todos fiquem presos a atitudes nitidamente viciantes, viciadas e viciosas. “Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo? Está bem, pois vamos limpá-lo.” Limpá-lo como fazem as piranhas brasileiras.
As vaidades e ambições humanas parecem inúteis a esse “juiz-penitente” – o termo aqui parece ter sido cuidadosamente colocado pelo autor –, como se fossem deformações da mente e do espírito. Como julgador, ele aponta o que chama de pequenos delitos ou crimes que não costumam ser tipificados pela lei penal. Constrói, desse modo, um “espelho moral” em que o leitor se vê refletido o tempo todo, pois se identifica com as situações. E assim, levá-lo a uma descoberta do seu próprio interior, como observou Victor Giudice, para quem talvez seja a omissão do homem frente a si mesmo a principal preocupação do autor ao compor seu romance. “No fundo, tudo se resume na atitude do indivíduo que se recusa a jogar-se ao rio para salvar o semelhante, porque a água está fria.” Ou seja, Clamence vive atormentado pela culpa por não ter dado a atenção a um fato que resultou na morte de uma mulher. “Apesar da distância, me pareceu, no silêncio da noite, de um corpo caindo na água. Parei instintivamente, sem me voltar. Quase ao mesmo tempo, ouvi um grito, repetido várias vezes, que descia também o rio, e que se extinguiu bruscamente.”
Ao cair em si que poderia ter evitado a morte de alguém, o egoísta Clamence deixa o glamour da cidade após uma vasta experiência hedonista, na qual a busca do prazer e da satisfação pessoal chegou a extrapolar o sentimento egocentrista. E assim vai parar em Amsterdam. Em seu sentimento egocentrista, ele diz: “Já reparou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabaram de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam mais, que estão com a boca cheia de terra! A homenagem vem, então, muito naturalmente, essa homenagem que talvez tivesse esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há mais obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não é o morto recente que nós amamos nos nossos amigos, o morto doloroso, a nossa emoção, enfim, nós mesmos!”
A carreira literária de Camus foi curta para um escritor e pensador. Durou apenas 14 anos. Ele morreu de acidente de carro, aos 47 anos, em 1960. Mas tempo suficiente para render merecidamente o Nobel de Literatura, em 1957. Começou em 1942, com a publicação de “O Estrangeiro”, considerado uma das mais importantes estreias literárias do século XX, e terminou com “A Queda”, que faz jus ao valor de sua obra. Em uma eulogia ao colega, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980) descreveu o romance como “talvez o mais belo e menos compreendido” dos livros de Camus. É ler para concordar.
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