O que é passar fome? Só quem viveu essa experiência, mesmo que brevemente, tem a exata dimensão. E só um grande escritor como o inglês George Orwell (1903-1950) conseguiria traduzi-la em toda a sua tragédia num texto único, que resultou em um de seus livros menos famosos, “Na Pior em Paris e Londres – A vida de miséria e vagabundagem de um jovem escritor no fim dos anos 1920”. Escreveu ele: “Quando você se aproxima da pobreza, faz uma descoberta que supera algumas outras. Você descobre o tédio, as complicações mesquinhas e os primórdios da fome, mas descobre também o grande aspecto redentor da pobreza: o fato de que ela aniquila o futuro”. Em seguida, acrescentou: “Quando você tem cem francos, fica à mercê dos mais covardes pânicos. Quando tudo que você tem na vida são apenas três francos, você se torna bastante indiferente. Você fica entediado, mas não tem medo. Pensa vagamente: ‘Em um ou dois dias estarei morrendo de fome – chocante, não?’ E então a mente divaga por outros assuntos. Uma dieta de pão e margarina proporciona, em certa medida, seu próprio analgésico.”
Conhecido como autor de dois dos mais importantes livros do século XX, “1984” e “A Revolução dos Bichos”, Orwell fez desse romance uma obra demolidora, de inspiração autobiográfica e fortemente influenciada por Fome, obra-prima do Prêmio Nobel de Literatura de 1920, Knut Hamsun (1859-1952). Então empenhado em escrever uma narrativa ficcional, mas de caráter socialista e denuncista sobre o flagelo do capitalismo, ele conta a saga do jovem Eric Arthur Blair, seu nome verdadeiro, decidido a virar escritor na Europa da década de 1920, devastada pela Grande Guerra de 1914 – uma curiosa inversão em que o pseudônimo vira autor e este se torna personagem, quando a regra é o contrário. A princípio, consciente dos riscos do desafio que se impõe, ele vive uma experiência pioneira e radical de se submeter à pobreza extrema como matéria-prima de seus escritos – ou fonte, para usar um termo mais jornalístico. Deve ter imaginado que a situação jamais fugiria a seu controle – e assim não acontece. Ele perde as rédeas completamente.
Em 1928, ele sai de Londres e se instala em Paris com as poucas economias que dispunha. Na capital francesa, passa a morar em um hotel barato do Quartier Latin, onde passa dias e dias a escrever quase compulsivamente. No decorrer de quinze meses, conclui dois romances e vários contos, rejeitados por todas as editoras que procura. Para sobreviver, dá aulas de inglês – em pouco tempo, entretanto, perde os alunos e é roubado. Sem dinheiro, tem de enfrentar a fome do dia a dia de modo dramático. Sem saber o que fazer, enquanto a miséria o cerca, livra dos poucos pertences que tem em lojas de penhora. Até lhe restar somente a roupa do corpo. Seu dinheiro acaba e ele arranja empregos instáveis e efêmeros como lavador de pratos. Uma das passagens mais impressionantes e terríveis desse romance claustrofóbico é quando o narrador relata suas passagens como empregado de restaurantes caros – cheios de percevejos, cozinhas imundas e sórdidas –,que faz o leitor perder para sempre qualquer boa impressão que tem de qualquer restaurante.
Ao concluir que não há mais como sobreviver na capital francesa, o jovem escritor retorna à Inglaterra. Nada melhora. Pelo contrário. Acaba por viver o limite suportável da pobreza naqueles duros anos de reconstrução que Orwell via como exemplo da falência do capitalismo, em contraposição a um suposto florescer do socialismo soviético. Enquanto espera por um emprego incerto prometido por um amigo, ele convive – num esforço de radicalizar também sua experiência – com mendigos que infestam toda Londres. Assim, perambula de albergue em albergue, construídos pelo governo para amenizar o problema, atrás de comida, cigarro, seu único vicio, além de um abrigo noturno para aliviar o frio. Sem cair na vitimização de seu personagem, com impressionante realismo descritivo, Orwell relata com humor e indignação, ao mesmo tempo em que consegue se distanciar, mesmo participando dos eventos relatados.
Recusado por várias importantes editoras inglesas, “Na Pior em Paris e Londres” foi publicado originalmente em 1933, assinado pela primeira vez com o pseudônimo de George Orwell, que consagraria Eric Arthur Blair como um dos maiores escritores do século XX. Um dos aspectos mais relevantes do romance aprontado pelos críticos é o modo como o autor situa geograficamente a história, em duas importantes capitais europeias, que ele descontrói de modo surpreendente e chocante, pois nada ou pouco tem a ver com a imagem imortalizada de perfeição das duas capitais, berços da civilização moderna. Diferentemente do livro de Hamsun, cuja miséria é individualizada e a intenção é criticar o processo de desumanização social, a história aqui explora o lado coletivo da pobreza por meio situaçõesdo cotidiano e as dificuldades enfrentadas por pessoas com pouco ou nenhum dinheiro. Destaca nesse sentido sua competência em contar, de modo hábil e bem construído, uma realidade que, mesmo estruturada por elementos literários, surge para o leitor sem qualquer caráter ficcional – embora alguns estudiosos tenham apontado que há detalhes que fogem um pouco à situação “real”.
Um dos méritos do livro de Orwell é a mistura de forma inteligente que ele consegue com a narrativa documental e jornalística e técnicas literárias predominantes na ficção. Tudo isso temperado com certo humor sarcástico que marca parte relevante das aventuras vividas pelo protagonista – como a descrição dos bastidores dos restaurantes –, explorado com crueza no esforço de tentar lidar com os agouros de não enxergar uma perspectiva de amparo e ter de lidar diariamente com as incertezas. Tudo isso cria uma atmosfera sufocante e desesperadora para o leitor. Uma sensação que aparece, por exemplo, quando o protagonista passa muitos dias sem se alimentar – ou sobrevive apenas de pão seco e chá. Uma tragédia que se agrava pela evidente falta de sorte do personagem, para quem tudo dá errado. Cansado de levar uma vida de semi-escravo, com poucas horas de sono por dia, ele parte acreditando que terá mais sorte em Londres, pois um amigo lhe promete um emprego. Se o propósito de Orwell era fazer um manifesto socialista, conseguiu muito mais. Seu instigante romance é um balde de água fria, daquele que desperta qualquer pessoa de um sono fora de hora. É ler para não esquecer essa experiência de fome jamais. Como se fosse uma vivência pessoal de quem lê.
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