Existe alguma lógica quando se diz que o segundo livro é a “prova dos nove” para um escritor que surgiu com um sucesso. Assim como acontece no meio musical, o disco seguinte a uma estreia badalada pode consolidar ou afundar uma carreira. No caso da escritora americana Susan E. Hinton, ela passou nesse teste. Mais ainda, foi aprovada com louvor. Depois de lançar, aos 19 anos, o romance juvenil “Vidas sem Rumo” (“The Outsiders”) em 1967, ela reapareceu em 1969 com outro livrinho de pequenas dimensões físicas, porém grandioso em conteúdo: o inesquecível “O Selvagem da Motocicleta” (“Rumble Fish”). Os dois títulos acabaram por transformá-la em uma das autoras mais importantes da literatura americana de seu tempo, graças ao modo como conseguiu captar com sensibilidade e perspicácia as inseguranças e os temores juvenis da periferia em um dos períodos mais conturbados da vida americana, quando os jovens contestavam a guerra no Vietnã e apoiavam a luta pela igualdade dos direitos civis, enquanto as feministas brigavam pela emancipação feminina, ao mesmo tempo que os hippies pregavam paz e amor, e os roqueiros se matavam com drogas pesadas.
Susan prometia ser uma escritora das mais produtivas depois de emplacar dois êxitos em tão pouco tempo. Após “O Selvagem da Motocicleta”, porém, vieram apenas duas obras em uma década: “Passou já Era” (1971) e “Tex” (1979), todos com a mesma temática de personagens adolescentes desajustados ao estilo de vida americano imperial a todos os cidadãos e que tentavam encontrar um rumo na vida ou um lugar no mundo. Depois, ela passou por um hiato de mais de uma década até ensaiar uma volta, em 1988, que não se consolidou, ao publicar “Taming The Star Runner” (1988). Todos os quatro primeiros livros são ótimos, divertidos e cativantes, na linha de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger (1919-2010). Mas “O Selvagem” – que a autora diz ser o seu preferido – se destaca pela singularidade e jeito cativante de retratar seus dois protagonistas, os irmãos Rusty-James, ainda adolescente, e o primogênito, um jovem adulto conhecido como “O Selvagem da Motocicleta”, famoso pelo jeito pessoal de resolver os problemas e que vê o mundo em preto e branco porque tem uma deficiência visual.
Sempre que se depara com um problema, o garoto órfão tenta imitar o mais velho e ser igual a ele – trata-o de modo venerado, como um ídolo – e parte para a violência contra gangues da vizinhança. Mas não consegue se impor por causa de um mundo mais real e difícil. Sem perspectiva, não sabe que caminho tomar para chegar à vida adulta com segurança. Sem qualquer discurso filosófico ou político, Susan explora outra faceta da sociedade americana que a mídia ainda não retratava de modo contundente em seu tempo, a dos inconformados, que se jogam ao risco de até mesmo perder a própria vida para encontrar algum sentido. Seus personagens, existencialistas e conflituosos, bem construídos e quase sempre tocantes, falam por ela, com sutileza e inteligência.
Há no livro várias proximidades com “Vidas sem Rumo”, que tem como protagonista Ponyboy, um adolescente que sonha em conquistar a garota dos seus sonhos e provar que pode ser um membro da gangue de seu irmão mais velho, conhecida como Os Greasers, porque usam brilhantina no cabelo, jaqueta de couro, calça jeans e têm como arma de defesa um canivete. A diversão principal da turma é brigar em terrenos baldios da cidade, sobretudo contra Os Socs, gangue formada pelos filhinhos de papai dos bairros ricos da cidade. Em ambos os livros, Susan questiona se esses rapazes são mesmo bandidos, delinquentes, marginais (outsiders) ou apenas jovens de comunidades carentes, com poucas perspectivas, à procura de uma saída para uma vida sem futuro. Na verdade, brigar é uma imposição de sobrevivência, pois vivem numa vizinhança em que o tráfico de drogas e o crime promovido por quadrilhas ditam suas próprias regras, sem qualquer intervenção direta do poder público no sentido de acudi-los.
Nas histórias da escritora americana, as leis existem, estão lá para servir de pressão ou coibir tacitamente e devem ser obedecidas como obrigação, sem se observar a complexidade que cerca esses conflitos quase sempre violentos. No meio do caminho, portanto, há muitas pedras para se andar corretamente. É quase um mundo de bárbaros no coração da América, que se gaba de ser o exemplo máximo de civilidade e modelo de democracia para o mundo. As dificuldades e os empecilhos que levam Rusty-James a amadurecer precocemente, a se cansar rapidamente daquela vida – que o aproximava cada vez mais da morte – e a tentar mudar seu destino, que parecia traçado para pior, dão o tom desse romance de formação. Sem se dar conta, Susan escreveu uma obra de caráter social – representado no cinema naquela década pelo filme “Amor Sublime Amor”, de 1960.
A escrita de Susan E. Hinton é a mais simples e direta possível e está longe de colocá-la entre os grandes escritores americanos de todos os tempos se os critérios forem apurada técnica e capacidade de construir personagens e histórias densas e significativas. Mas não são apenas esses aspectos que consagram um romancista, apesar de se tratar de valores quase sempre levados em conta primordialmente. Retrato acabado de uma geração que ainda continua vigoroso, “O Selvagem da Motocicleta” se revela ainda forte e comovente sobre o universo de sonho, revolta e violência da juventude de todos os tempos e em qualquer lugar, pois o espírito indomável dos adolescentes tende a se renovar a cada nova geração. Pelo menos é assim que costuma acontecer.
Em um ritmo narrativo sedutor comum em seus livros, com doses de suspense e tipos ricos no sentido de terem personalidades fortes, Susan acumulou ao longo de décadas gerações de fãs e acabou por convencer Francis Ford Coppola a filmá-lo em 1983, com o título de “Rumble Fish” (Peixe de briga), e interpretações inesquecíveis de Matt Dillon e Mickey Rourke. A escolha do título original é realçada na tela e tem a ver com os peixinhos vermelhos que, dentro de um aquário, brigam entre si até a morte. Todo rodado em preto e branco, o longa traz cor somente nos peixes, graças a uma incipiente técnica de edição na época.
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