O dia do casamento para uma noiva costuma ser de muita ansiedade, expectativa e, claro, alegria, como manda o figurino das regras sociais e morais e o ideal romântico que se estabeleceu nos dois últimos séculos. Afinal, o ato em si carrega grande responsabilidade familiar e, muitas vezes, econômica. Fato é que casar, muitas vezes, pode ser um bom negócio e o amor aparece como algo irrelevante, contornável, protelável, dispensável e sua falta algo suportável. Há tempos tem sido assim. Primeiro, com reis, rainhas, príncipes e princesas. Depois, entre as elites e, por fim, com os mortais em geral. Em qualquer situação, porém, no íntimo, o evento pode ser um tormento para uma das partes, marcado por dúvidas, aflições e o desespero de não se ter coragem para interromper o processo antes que ele se complete. Até cinco minutos antes de se dirigir à capela da família, a bela e cobiçada Dolly Thatcham, de 23 anos, oito a menos que o noivo, Owen Bigham, sonha que o grande amor da sua vida, Joseph Patten, à sua espera na sala de estar para acompanhá-la, peça-lhe para desistir de tudo e fuja com ele. Uma história assim, no século XXI, pode parecer banal, comum, pouco interessante. Mas na Inglaterra da década de 1920 incomodaria. E muito. Como de fato aconteceu.
Quando foi lançado, em 1932, o romance “Um Dia Perfeito para Casar”, obra de estreia da jovem escritora inglesa Julia Strachey (1901-1979), ainda desconhecida no Brasil – acaba de sair uma edição pela Record, depois da adaptação para o cinema no ano passado – e um clássico da literatura inglesa no século XX, deu o que falar. Não só pelo modo realista como tratou o casamento quanto pelas suas qualidades de escrita, nem sempre esperado para uma autora que debutava no mundo das letras. O volume foi lançado pela Hogarth Press, editora de Leon e Virginia Woolf, que o descreveu como um romance “surpreendentemente bom – completo, sagaz e original”. Poucas vezes as aparências enganam tanto quanto nesse livro breve e delicado, porém carregado de fina ironia, humor tipicamente inglês e subversão moral. O texto é, à primeira vista, uma típica prosa pejorativamente chamada de “literatura de mulherzinha”, daqueles que trazem alguma história folhetinesca sobre amor idealizado e casamento perfeito e eterno, até que a morte os separe. A sinopse ajuda nesse sentido. Owen é um promissor e bem sucedido diplomata e pretendente, bastante adequado para a jovem britânica de classe média com pretensões a ascensão econômica. Todas as circunstâncias encontram-se favoráveis à união do jovem e belo casal no altar: o dia começa ensolarado, a confortável condição social do noivo, a aprovação da família dela.
O único porém está no fato de Dolly estar em dúvida se realmente quer se casar com ele. Não só porque tudo aconteceu rápido demais: depois de viagem à Albânia e um curto noivado, mas porque ela gosta de Joseph. Toda a trama se passa num único dia, na mansão de campo, em Devon, onde as duas famílias e os amigos do casal estão reunidos. Entre os personagens que ganham voz ou se destacam aparecem: a irmã da noiva, Kitty; a melhor amiga, Evelyn Graham; a tia solteirona Bella e seus comentários irônicos; o cônego Bob; os tios David e Nancy Dakin – com o filho, Jimmy, de oito anos; a mãe (e viúva) Hettie Thatcham; os primos adolescentes Robert e Tom, e os irmãos gêmeos do noivo. Todos, de uma forma ou de outra, contribuem para que a desagregação aconteça antes da cerimônia, principalmente na longa conversa que desenvolvem entre as estantes de livros da casa, nas duas primeiras partes do romance. “Ah, os animais estão sendo alimentados na biblioteca”, diz Bella, ao entrar. Mas é Joseph, amigo e ex-namorado de Dolly, quem cria instabilidade na noiva, ao aparecer para a festa, sem saber exatamente porque fez isso. “Meu próprio objetivo ainda é ser um cavalheiro inglês de mãos limpas e mente suja”, afirma ele, cujos planos não inclui atrapalhar o casamento. Joseph quer falar com a noiva, dizer alguma coisa que nem ele mesmo sabe o que é.
Uma postura assim, tão intima e inconfessável de Dolly, era algo inconfessável para uma mulher nessas condições, na Inglaterra do começo do século XX, quando o casamento era visto como algo indissociável da felicidade feminina. Nada isso, porém, aparece como forma de discussão por Julia Strachey. Questionar o próprio futuro e a fatalidade em que a protagonista se encontra lhe parece natural, explorado sem qualquer pregação feminista. “Dolly teve a convicção, ao olhar para o longo véu de noiva que se estendia infinitamente, e para as mulheres, também, tão atarefadas em torno dela, que, com certeza, algo importante e desagradável estava prestes a acontecer em sua vida”, observou a narradora. Mais adiante, uma serviçal diz ao jovem por quem a noiva é, de fato, apaixonada: “Na minha opinião (agora eu não sei com que tipo de cavalheiro estou falando nesse momento, lembre-se disso), mas, na minha opinião… Se você quer mesmo saber, casamento é uma grande besteira. Meu marido morreu há sete anos. Graças a Deus. E nunca mais, mas nunca mais mesmo, quero saber de me casar de novo!”
Desorientada e perdida entre pensamentos e a pressa para se arrumar, Dolly se apega a uma garrafa de rum para manter a coragem e a decisão de seguir em frente com a cerimônia – que a faz derrubar um tinteiro azul em seu alvíssimo vestido de noiva. Ela passa os últimos momentos a lembrar de Joseph e os passeios de barco que os dois fizeram no verão passado. Os dois se conheceram num jogo de cricket e conviveram por seis meses. Seu coração está dividido entre o casamento ideal para uma moça da sua posição e a paixão incerta por alguém que está fisicamente tão próximo. Enquanto isso, os convidados não param de chegar, muitos deles parentes vindos de diversos lugares, com suas opiniões e conflitos. São tipos curiosos e excêntricos, em sua maioria. A anfitriã, mãe da noiva, diante da certeza de que sua filha encontrara o marido ideal, parece se preocupar exclusivamente se o tempo estará bom na hora da festa, para que tudo saia perfeito. Relações que se alternam e alteram, temperadas com ferroadas de todos os lados. Na terceira parte do romance, Dolly se mostra atordoada por dúvidas. Na quarta, Joseph se martiriza pelo sentimento secreto e pelas lembranças do amor que vai perder em menos de uma hora.
Com um texto breve, fluente, maduro e tecnicamente irretocável em sua construção, eficiência e condução narrativa, mas que não explicita a que ponto quer chegar – até a surpreendente revelação nas últimas páginas –, a talentosa Julia Strachey fez uma entrada promissora e brilhante no mundo das letras, cuja coragem temática se explica, em parte, pelo prefácio feito por sua amiga de toda a vida e biógrafa, Francis Partridge (1900-2004), datado de 2002, quando ela tinha 102 anos de idade. Embora terna e carinhosa em suas observações, ela a descreve como uma mulher “problemática” – que pregava o livre arbítrio e o amor livre para ambos os sexos. “Infelizmente, Julia era uma pessoa desajustada. Esperava receber muita atenção dos homens e era extremamente sedutora, ainda que um tanto distante. Mas, de alguma forma, ela não alienava as pessoas, todos gostavam muito dela. Por exemplo, Rosamond Lehmann procurou manter um bom relacionamento com Julia, apesar de ela flertar insistentemente com seu marido, Wogan Philipps”.
Francis atribuiu esse comportamento amoral como uma provável conseqüência do abandono sofrido por parte dos pais. Julia nasceu na Índia, em 1901, filha de um funcionário civil do governo britânico. Após o divórcio dos genitores, ainda muito pequena e rejeitada por ambos, foi criada por parentes na Inglaterra. Ao completar cinco anos, passou a ver a mãe apenas esporadicamente – ela teve um filho de novo relacionamento, mas a futura escritora só o viu uma única vez. Em 1927, aos 26 anos, Julia se casou com Stephen Tomlin, cuja mãe inspirou a personagem da Senhora Thatcham. Mas ela, na verdade, não amava o esposo e a relação durou apenas quatro anos. A biógrafa sugere que o livro reflete as desilusões pessoais da autora quanto às relações amorosas. Ao mesmo tempo, deixa claro seu espírito libertário e de emancipação feminina que só ganharia força, de fato, durante e depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Obra ousada e precursora, “Um Dia Perfeito para Casar” é cheio de frescor e uma leitura de grande prazer para mulheres e homens.
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