[32 de 100] Os primeiros mauricinhos da América, segundo Ellis

32O efeito impactante que provoca a ótima adaptação para o cinema que o diretor Marek Anievska fez em 1987 do romance “Abaixo de Zero”, do precoce escritor Bret Easton Ellis, com Robert Downey Jr num dos papéis centrais, acaba por ser um problema inicial quando se vai ler o texto original. As imagens fixadas na mente teimam em conduzir o esforço do leitor em idealizar fisicamente nas primeiras páginas os personagens e dos ambientes. Não demora, felizmente, para o livro de Ellis se mostrar razoavelmente diferente o suficiente para parecer outra obra em relação ao que se vê no filme, porque Anievska foca muito num personagem, o traficante Julian, melhor amigo do protagonista, que não tem relevância alguma em pelo menos dois terços da história.

Ao mesmo tempo, o livro se impõe como um dos mais originais e interessantes romances surgidos nos anos de 1980, a última década a ter uma identidade visual própria e marcante – glitter, ombreiras, basqueteiras, moda andrógena etc –, uma estética que não se teria nas duas seguintes, marcadas pela globalização econômica, cultural e, mais profundamente, de costumes. Sem maiores pretensões, aliás, Elis acaba por fazer um retrato dessa época como consequência frustrante dos desejos e ambições dos vinte anos anteriores, quando o ocidente viveu uma explosão de transformações voltadas principalmente para as liberdades individuais e coletivas, inclusive quanto ao uso drogas e no sexo descompromissado. A década de 1980, pode-se dizer, foi a da ressaca desses excessos e de descobertas em que se começava a esboçar certa ditadura do individualismo – representada pelos yuppies engravatados – que seria instituída com a derrocada do comunismo soviético e o fim da guerra das ideologias e da busca por um mundo mais justo e humanizado.

A história de “Abaixo de Zero” espelha de forma impactante tudo isso e, à medida que os anos passam, transforma-se numa peça antropológica e de uma era marcada pela perda de esperança e em que as drogas sepultaram o glamour e mostrou sua faceta terrível de destruir vidas, enquanto jovem convivem com a alienação e a falta de perspectivas e de objetivos, que seriam agravadas nos trinta anos seguintes. Sem cair no panfleto e uma narrativa morna e propositadamente repetitiva, o escritor explora com mordacidade e pegada politicamente incorreta, sem moralismos, mas com uma ironia refinada, o estilo de vida americano em decadência. Escrito quando o autor de “O Psicopata Americano” – marco da década de 1990 – tinha apenas 20 anos de idade, o livro conta os 30 dias de férias da faculdade de Clay que, aparentemente, para a sua família, é um bom rapaz que está prestes a se tornar um exemplo promissor de jovem profissional liberal.

Ele retorna para a casa dos pais, em Los Angeles, e vive um mês inesquecível, entre a véspera do Natal e o fim de janeiro, ao reencontrar, apenas quatro meses depois de começar os estudos superiores e de se afastar da cidade. Apesar do pouco tempo, muita coisa parece ter mudado de modo relevante. Bissexual não assumido – segredo que ele esconde dos amigos mais próximos e das garotas com quem flerta o tempo todo –, o bom moço Clay gosta de viajar de primeira classe e não é nenhum santo. Parece manter controle sobre o consumo de diário de cocaína, fornecida por “seu” traficante Rip – é também consumidor constante de Valium. Entre os encontros com os amigos, marcado com diálogos fúteis e um esforço para se parecerem diferentes e interessantes, ele frequenta semanalmente o consultório de um jovem analista, que não leva a sério e gosta de tirar sarro. Interessa saber apenas que o médico tem uma casa em Malibu e dirige um SL 450.

Clay tem uma relação confusa e mal resolvida com a bela e dedicada Blair, gamada nele, e lidera a turma de mauricinhos que desfilam com suas BMW e Porche – uma versão hardcore desse universo burguês que certamente influenciou a série de TV americana “Barrados no Baile”, nos anos de 1990. Dentre eles, Trent e Julian, além de Daniel, colega de faculdade com quem se encontra regularmente.  Ao chegar do aeroporto, ele não encontra ninguém em casa – a mãe e as duas irmãs adolescentes foram às compras de Natal. Seu pai, divorciado, vive longe da família, mas dá aos filhos todo conforto. Ele é um executivo da indústria do cinema vaidoso a ponto de fazer implantes de cabelo e uma série de cirurgias plásticas no rosto. Somente na noite do mesmo dia da chegada, na festa natalina de Blair, que Clay revê finalmente a turma, formada por milionários bêbados e drogados que pouco têm a dizer de interessante e, como o protagonista, adoram o modismo reinante de usar óculos escuros à noite.

Seus amigos são modelos – um deles, prestes a posar nu para uma revista gay –, atores e diretores de publicidade e do cinema, que vivem nas proximidades de Beverly Hills e adoram assistir a MTV, então a novidade juvenil fundamental para os descolados de classe média e alta. Até que sua atenção se volta para Julian, cujo mundo está desmoronando tão rapidamente, que eles pode afundar junto com ele. As pistas de algo anda errado surgem quando Clay empresta ao amigo uma grande soma em dinheiro, supostamente para pagar um aborto. O resultado é uma história impressionante e marcante de três jovens que começaram com tudo e que estão a ponto de ficar Abaixo de Zero, como indica o título. A história de Clay e sua turma é contada entre citações frequentes de músicas pop americana, o que faz de Ellis um precursor em fazer literatura pop mesclada com citações de canções, indispensáveis na concepção de cenários, que consagraria escritores como o inglês Nick Horby, autor de “Alta Fidelidade”, clássico dos anos de 1990.

Sua geração vive anestesiada, à base de álcool, tóxico, sexo, violência e pornografia – aquela seria década de consagração desse lucrativo negócio imoral, que passa a ser tolerado pelo governo americano – e bronzeamento artificial, uma novidade tecnológica que começava a se tornar mania entre os endinheirados. Alguns viciados como Julian mais parecem zumbis vestidos com roupas de grifes, que tentam, de modo desesperado, provar que ainda estão vivos – o crack ainda não se disseminara ou não existia. Entre drogas, festas e carrões importados, esses excêntricos jovens desconhecem limites, até mesmo da resistência física, diante do modo como exploram seus corpos e mentes. Ao mesmo tempo, tentam a todo custo mostrar que a vida é isso mesmo, imediata, urgente, violenta e mortal. O autor consegue captar bem o clima desses jovens, mimados e inconsequentes, sempre atrás da próxima emoção fugidia, num mundinho movido a baladas, sessões de cinema – foi a época trash dos filmes de terror – com muito tédio e futilidades.

Consagrados como a era do videoclipe, graças à MTV, aqueles anos servem de contexto para explorar com densidade e profundidade a morte da inocência e a decadência de seu romantismo. “Ligo a TV e digo a mim mesmo que se tivesse algum Valium conseguiria me despreocupar e dormir, e aí penso em Muriel e fico um pouco enjoado enquanto os clipes começam a passar como raios”, diz Clay. Apontado pela crítica como “a primeira voz” surgida entre os escritores americanos da safra entre os 20 e 30 anos, Bret Easton Ellis se inspirou basicamente na linguagem fragmentada dos clipes musicais, em cenas curtas, veloz sobreposição de imagem sobre imagem. Sua intenção parece ter sido criticar “o bombardeio cultural a que é submetida a juventude de hoje em dia”, como descreve a primeira edição brasileira, lançada pela Rocco em 1987. São os pobres meninos ricos que se tornam personagens daquele que foi considerado “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Salinger (1919-2010),  de sua época.


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