[33 de 100] A mente de um psicopata americano, segundo Jim Thompson

O AssassinoA pequena cidade americana de Central City explodiu seu número de habitantes da noite para o dia, por causa da descoberta de petróleo, no final da década de 1940. Fundada em 1870, manteve-se como vilarejo, ponto de escoamento de gado e do pouco de algodão que se produzia em suas fazendas. Mesmo com a instalação da sede da Construtora Conway, cujo fundador, Chester Conway, nascera e vivia ali no tempo presente da história, nunca passou de um lugar amplo e pacato à beira de uma estrada texana. Com o ouro negro, cuja produção foi iniciada doze anos antes, o lugar atingiu a população de 48 mil pessoas, muitas delas forasteiros e aventureiros. 

Mesmo assim, o determinado sub-xerife Lou Ford, de 29 anos, preferia andar desarmado. “Não temos muitos bandidos por aqui”, disse, a uma garçonete, impressionada por ele não usar revolver como meio de autodefesa. “De qualquer maneira, gente é gente, mesmo se um pouco rebelde. Se você não os machuca, eles também não machucam você. Darão ouvido à razão”, teorizou, em seu estilo filosófico famoso na cidade. Ford era respeitado, mas sua chatice evidente de falar demais e divagar sobre a vida chegava a incomodar os moradores. Bastava puxar conversa para ele desandar a soltar suas frases de efeito sem fim. Gostava de dizer que “a pressa é inimiga da perfeição” e de avaliar com antecedência todas as situações antes de agir. 

Mas as aparências enganam e Lou apenas criara um personagem para si mesmo. Havia um monstro dentro dele. Corajoso, a única pessoa do mundo que temia era a si mesmo. Fazia 15 anos desde a última vez que ele sentiu “a coisa” incomodá-lo – que o leitor logo descobrirá que se trata de um desejo incontrolável de matar pessoas do modo mais violento possível, com desfiguramento do rosto e muito sangue. Até que, certo fim de tarde, sua vida começou a tomar um rumo arriscado quando o xerife pediu para que fosse ao rancho que ficava a nove quilômetros da cidade, onde morava a prostituta loira Joyce Lakeland, e a convencesse a deixar a cidade, por causa das queixas dos puritanos e moralistas da cidade.  

A moça o agrediu a tapas e o insultou. Acuado, Ford tentou deixar o local às pressas. “Sabia o que ia acontecer se não saísse e sabia que não podia deixar aquilo acontecer. Poderia matá-la”, pensou ele, que narra a história em primeira pessoa. A situação poderia trazer o “mal-estar” de volta – o que vai acontecer e transformar a vida da cidade num inferno. E mesmo que não a assassinasse, qualquer ato de violência de sua parte poderia fazer com que a garota comentasse, ele ficasse visado e as pessoas poderiam pensar sobre um episódio que acontecera 15 anos antes – um mistério que vai atravessar toda trama, como suspense. Depois de provocar a queda acidental do policial, Joyce se arrependeu e perguntou se, por causa daquilo, iria machucá-la. Ele respondeu que não. “Sei que você não faria isso. Qualquer um percebe que você é um cara tranquilo demais”, afirmou a prostituta.

Joyce foi lentamente em sua direção e lhe deu a mão. “Não, querida”, sorriu. “Eu não vou machucar você. Nem passaria pela minha cabeça machucar você. Eu só vou acabar com a tua raça”. E seguiu-se uma surra violenta que a deixou quase desfalecida, amarrada na cama. Mesmo assim, a moça se ergueu, beijou-o e eles começaram uma estranha relação de sexo, movida a violência. Enquanto isso, depois de seis anos, Ford descobriu que seu irmão não morreu em um acidente quando trabalhava numa obra da construtora de Chester Conway. Fora assassinado, num plano armado por Conway. Mike voltara à cidade depois de cumprir pena por uma série de crimes terríveis e teria pagado com a vida por vingança. O que ninguém sabia na cidade era que ele não praticara delito nenhum, apenas assumira a culpa no lugar do agora sub-xerife, por ser mais velho e gostar muito dele. O policial, então, partiu para uma ardilosa vingança em que sua mente de psicopata pretendia que tudo saísse perfeito e nenhuma suspeita recaísse sobre ele.

O plano de Lou Ford incluía, inicialmente, a eliminação de Joyce e do filho do empreiteiro – para que este sentisse a mesma dor de seu pai, quando perdeu Mike. É assim que começa “O Assassino em Mim”, do escritor americano Jim Thompson (1906-1977), um dos romances policiais mais importantes e originais de todos os tempos, um exemplo de exercício de gênero perfeito e inigualável, uma trama macabra meticulosamente construída como raramente se viu em qualquer gênero ficcional. Thompson escreveria outros grandes livros, num total de 30 obras, mas poucas foram lançadas no Brasil: “Fuga Para o Inferno” (Globo, 1958), “Os Implacáveis” (Editora M.M, 1973; Vintage, 1994), “Noite selvagem” (Globo, 1981), “Uma Mulher Infernal” (Globo, 1984), “Os Imorais” (Paulicéia, 1991) e “1.280 Almas” (Ediouro, 2005). “Ele é o meu escritor favorito de histórias policiais”, escreveu o colega Stephen King. “Sempre tentam imitá-lo, mas é em vão”, completou. 

Seu nome também estaria atrelado à de um dos mais importantes diretores da história do cinema, Stanley Kubrick (1928-1999). Os dois escreveram a quatro mãos os roteiros de dois dos seus primeiros filmes – “O Grande Golpe” (1956) e “Glória Feita de Sangue” (1957). Kubrick era fã dos romances de Thompson. Mas gostava em especial de “O Assassino em Mim”. A ponto de dizer: “Provavelmente a história mais perturbadora e verossímil narrada por uma mente criminosa que eu já li”. Sem dúvida que é. Enquanto o cinema de Hollywood era policiado para que filmes de crimes não pegassem pesado em suas histórias, com violência exagerada, principalmente – matava-se, mas o sangue sequer era visto escorrendo da vítima, Thompson reinventava as tramas noir impressas com uma história surpreendente a cada página.

Esquematizado de modo cuidadoso para que cada capítulo trouxesse um momento de suspense e tensão de tirar o fôlego, seu livro prende o leitor obsessivamente até a última página, com reviravoltas que se sucedem, sem obedecer a fórmula padrão do crime inicial, seguido da investigação e da descoberta do assassino no final. “O Assassino em Mim” revela desde o começo o nome do malfeitor. Mais que isso, o próprio matador conta a história e permite a quem ler acompanhar sua mente diabólica, capaz de reagir friamente para voltar a situação a seu favor e neutralizar as ameaças que surgem para desmascará-lo. É uma mente cruel e despida de qualquer senso moral ou de humanidade que conduz a leitura, de modo arrebatador, que faz de Thompson um mestre da narrativa.

Nascido em 1906, James Meyer Thompson teve uma juventude difícil, quando os Estados Unidos mergulharam numa depressão econômica sem precedentes. Antes, sua família já vivia com recursos limitados. Nos anos que se seguiram à crise de 1929, ele trabalhou como operário em campos de petróleo no Texas, uma experiência difícil – pelo desgaste em lidar com máquinas pesadas e pessoas aventureiras, e riscos comuns à exploração da matéria-prima –, que lhe permitiu depois criar personagens contraditórios e dissimulados, que se dividiam em comportamentos que iam da brutalidade à empatia. Exemplos disso estão presentes em “O Assassino em Mim”. Thompson também exerceu tarefas de consertador de chaminés, ator de teatro, jogador, alcoólatra e comunista – como roteirista de filmes, ele entrou na lista negra de Hollywood, proibidos de conseguir trabalho nos grandes estúdios. Assim, tornou-se um inovador do romance policial – e do cinema também –, apesar de não ter a fama de outros autores contemporâneos, como Dashiel Hammett (1894-1961) e Raymond Chandler (1888-1959).

A maioria de seus romances e novelas foi publicada a partir do final dos anos 1940, quando ele já tinha mais de quatro décadas de vida. Apesar de algumas críticas positivas, especialmente do jornalista Anthony Boucher, do jornal “The New York Times”, Thompson foi pouco reconhecido em vida e não levou o crédito de ter introduzido de modo profético no romance noir a figura do serial killer, um tabu que também retratou em “1280 Almas”. O escritor morreu em 7 de abril de 1977. A seu pedido, suas cinzas foram jogadas no Oceano Pacífico. Em 2010, o premiado diretor Michael Winterbottom refilmou “O Assassino em Mim” – a primeira versão, de Burt Kennedy, ocorrera em 1976 –, com Casey Affleck no papel de Lou Ford e Jessica Alba como a prostituta Joyce Lakeland. A versão está à altura dessa inesquecível história policial.


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