[34 de 100] O futuro será totalitário, segundo Eugene Zamiatin

32Uma comparação se torna inevitável depois que se lê o romance “Nós”, do escritor russo Eugene Zamiatin (1884-1937), e o livro “1984”, do inglês George Orwell (1903-1950), embora o segundo leve a vantagem de ser muito conhecido e o primeiro quase nunca ser citado, lido ou reeditado. “Nós” chegou às livrarias em 1920 e a obra de Orwell, em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ambos são narrativas sobre uma época futura em que um governo de totalitarismo absoluto controlava, à força, claro, a vida dos cidadãos. Assim, permitia-se apenas um modo de pensar e agir: o apoio incondicional ao Estado e à sua ideologia opressora em nome do suposto bem estar da coletividade. Zamiatin idealizou uma sociedade em que a pessoa comum vive sob constante vigilância, não apenas por parte do poder, como pela própria população, dos seus vizinhos, amigos e parentes, que sucumbiram a uma entidade onipresente e onipotente, que dizia olhar por todos e fez com que a delação seja uma forma de comportamento padrão natural, além de ferramenta cruel para vinganças mesquinhas. 

Não é mera coincidência qualquer semelhança com o que começava a acontecer com a Rússia naquele momento e nas três décadas seguintes, quando o país foi governado pelo tirano Joseph Stalin (1878-1953), ancorado em um regime que se denominou comunista ou socialista. No calor da revolução iniciada três anos antes do livro sair, quando se pregava a promessa de bonança para todos, Zamiatin se tornou um visionário e um profeta espantoso. Ele idealizou um Estado que se tornaria assombrosamente real, onde qualquer tipo de manifestação de criatividade ou de individualidade não era visto apenas como transgressor, mas subversivo no pior sentido e deveria, portanto, ser repreendido ou punido. Sua história se passa num futuro bem distante, no século XXVI, quando o mundo acabara de ver chegar ao fim a Guerra dos 200 anos, um conflito de dimensões tão absurdas que somente dois décimos da humanidade sobreviveram – vale lembrar que a bomba atômica ainda não tinha sido criada. 

Para se manterem organizados e longe de ameaças, povos se isolaram atrás de imensas muralhas, que delimitaram fisicamente os domínios do que consideram a mais perfeita forma de organização humana conhecida até então – o Estado Uno. Nesse contexto, os habitantes moravam em apartamentos com paredes de vidro, andavam por ruas de vidro, trabalhavam em repartições de vidro. A estrutura não tinha qualquer sentido de contemporaneidade, mas de conveniência ou convergência, pois transformava a população no maior vigilante de si mesma – havia o propósito de que a transparência, a clareza e a coletividade funcionassem como conceitos-chaves plenos do regime estabelecido, de modo que tudo ficasse em harmonia, claro. Na prática, era preciso haver intimidação, censura e terrorismo policial. Para isso, foi montado um aparato oficial de vigilância e repressão, cujos membros eram chamados de Os Guardiões, que atuavam na busca incessante de subversivos – um conceito amplo e cruel que poderia atingir qualquer um que fosse entendido como responsável por algum sinal de dissidência. Delatada, a pessoa ficava sujeita à máquina executora do Benfeitor, o misterioso e imponente líder, que olha por todos e governa o Estado Uno com seu “amor frio e matemático”. 

Nesse não tão admirável mundo novo, as pessoas tinham horas marcadas para “empreenderem esforços de procriação”, em contatos sexuais extremamente impessoais, quase mecânicos. Eles podiam fechar cortinas apenas durante os encontros íntimos – essa transparência literal em “1984” aparece na forma das telas de vídeo, mas, em 1920, a presença da TV, ainda não inventada, era algo impensável. Mas o medo se estendia até mesmo ao simples ato de pensar. Noções como “meu” ou “seu” eram consideradas absurdas – daí o título do livro, como algo maior e coletivo, pelo qual todas as arbitrariedades eram cometidas. O nome ou número do personagem-narrador era D-503. A partir de seu diário, o leitor acompanha suas confidências, reflexões e impressões sobre o mundo em que ele vive. Outros personagens importantes na estória são I-330, U e O-90. Até que D-503 entra em conflito consigo mesmo por causa de uma mulher que lhe mostra o lado prazeroso – e proibido – de uma existência monótona e regrada que leva, sob constante vigilância de um “Big Brother”, para pegar emprestado uma expressão criada por Orwell. 

Mais que apontar semelhanças entre os dois romances – ou a influência que Zamiatin teve sobre importantes autores, como Aldous Huxley (1894-1963), em “Admirável Mundo Novo” –, é importante ressaltar os valores literários e criativos do escritor russo, sem dúvida um dos mais influentes do século XX. E o seu pioneirismo, claramente atrelado ao momento em que ele vivia. Seus biógrafos observam que, para entender em que contexto ele criou seu romance, é preciso lembrar que desde o início do século XX, havia certo clima de ideias autoritárias que ameaçava chegar ao poder em vários pontos da Europa nos anos que antecederam à Primeira Grande Guerra (1914-1918) e que não arrefeceu com o fim do conflito, quando medidas radicais ganharam simpatia como saída para a crise que se seguiu à devastação pelo conflito de países como a Alemanha. A Revolução Russa, que logo ganharia a concorrência de uma ideologia não menos opressora, na prática – o nazismo, ideologia que tomaria o poder na Alemanha em 1933 –, foi outro elemento importante que fez o escritor imaginar um futuro tão sombrio.

No seu meticuloso e extenso romance, Zamiatin não se limitou a descrever fatos de sua aventura futurista. Expressou, com coragem, suas ideias e fez uma série de críticas ao estado das coisas e o rumo que tomavam na época. “Não existe uma revolução definitiva, as revoluções devem ser infinitas”, pregava ele. “Uma revolução final é para crianças… elas temem o infinito e é importante que durmam tranquilas à noite.” Mais adiante, seu protagonista observou: “Não quero que alguém queira por mim. Quero querer por mim mesma.” Ou, ainda, quando prenuncia a construção do Muro de Berlim, quarenta anos depois: “Derrubaremos todas as paredes para deixar a aragem renovadora soprar livremente de um extremo a outro da Terra.” Acima de qualquer coisa, sua redentora história é um tratado em defesa da liberdade humana, que, para ele, estava acima das ideologias, sistemas ou regimes políticos. De todos eles.


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