[35 de 100] A linguagem dos fins dos tempos, segundo Fausto Fawcett

IMG_0073A princípio, o leitor pode achar exagerada a apresentação do livro de contos “Básico Instinto”, do escritor e compositor carioca Fausto Fawcett, feita pelo diretor de cinema Cacá Diegues. Com coragem, ele afirma que Fawcett é o novo Guimarães Rosa (1908-1967) porque cria uma linguagem narrativa inovadora, nessa reunião de contos hipnóticos pós-modernos, quase pós-apocalípticos. “Como um Guimarães Rosa urbano, Fausto Fawcett tira sua língua nova dos grandes sertões cariocas, das veredas de Copacabana, uma língua feita de palavras absurdas e impuras, cujo sentido se transforma no contato de uma com as outras, numa montagem pop barroca. Essa língua recorre a todos os costumes de rua, a todos os dicionários eruditos, às páginas da imprensa policial, mas, sobretudo, à síntese do novo cinema, do vídeo e da televisão”.

Assim, “Básico Instinto”, lançado em 1992, seria “a obra de um dos artistas que, no Brasil, melhor compreendeu a nova visão de um homem sem destino preciso, que não ruma necessariamente a direção pré-determinada alguma. Um homem cujo destino é o êxtase da crise permanente”. Segundo Diegues, Fawcett talvez seja o primeiro escritor brasileiro a reproduzir essa estrutura de pensamento audiovisual em seu texto. Ao final da leitura do livro, nada restará senão concordar com o diretor. Se o autor mineiro revolucionou a escrita com seu “Grande Sertão: Veredas”, lançado em 1956, é inegável a ousadia experimental de Fawcett, que funciona com eficiência e leva a algumas conclusões sobre suas qualidades literárias, como a incompreensível falta de reconhecimento pela crítica desse volume irretocável, algo só explicável pelo fato de ter saído como mais um produto aparentemente oportunista vinculado ao megahit que ele alcançou com o funk eletrônico “Kátia Flávia, A Godiva do Irajá”.

A letra da música é um indicativo fragmentado do tom das aventuras literárias da estonteante personagem, que protagoniza o primeiro conto. Fawcett relata exatamente a história da anti-heroína apocalíptica da canção e toda a cifração dos versos se revela numa trama alucinada, regada a muitas balas de chumbo e sangue. A história começa com um guia que conduz repórteres às ruínas do Taj Mahal roxo, em pleno centro de Irajá, onde morava o casal Kátia Flávia e Salomão Calígula, rei do tráfico de drogas da região. O local é decorado com bonecos Pato Donald em porcelana e “paredes de guard-rail chamuscados e monitores amontoados passando tapes de desfiles de escolas de samba e chão com grafites pornográficos”.

Salomão estava na vanguarda da contravenção, “apesar de usar o recurso clássico dos negócios limpos para servirem de biombo-fachada para suas transações sujas: tráfico de menininhas escravas branquinhas por príncipes árabes e africanos, indústria de nêutrons pocket para utilização por exércitos e comandos variados em grupos terroristas, vírus domados, espécies de micróbios adestrados assim armas biológicas, loteria da morte”. Kátia Flávia era a encarnação do mundo cão. “Ex-miss FEBEM, seu corpo era cheio de hormônios suspeitos. Ex-pivete, ex-menina de rua capturada e maltratada pela seita suspeita Leão de Judá, bezerro imolado, cordeiro imolado, ex-vítima de anestesistas depravados nas profundezas do INAMPS (SUS). Anestesia local, sexo oral. Anestesia local, sexo anal. Anestesia geral, sexo total. Passou por todas as casas de detenção feminina, mas conseguiu dar a volta por cima namorando um ou outro gerente de concessionária e abriu uma rede de puteiros teleféricos”. 

Kátia Flávia, “menina extremamente voyeur. Instavelmente uterina. Ovulação grossa. Ovário pesado. De vez em quando o mundo-cão vinha à tona e ela precisava tomar cápsulas, pílulas de autismo concentrado, pílulas de ausência mental.” Em seu tríplex, tinha sala de tiro ao alvo onde atingia réplicas das estátuas de Aleijadinho – tiro ao alvo barroco. Mas ela ficou famosa mesmo, virou símbolo sexual suburbano quando resolveu cavalgar nua pelas esquinas dos subúrbios num cavalo branco. “Ela colocava seu colar de esferas bic, seu colar de tungstênio, soltava seus cabelos e começava a cavalgar pelos conjuntos habitacionais, pelas ruelas mais sórdidas, pelas avenidas mais movimentadas, pelas quebradas das favelas. A inveja, porém, fez com que outras mulheres espalhassem que ela não passava de uma louraça belzebu, louraça lúcifer, louraça satanás”. Até que Salomão Calígula é eliminado e sua mulher surta, num Mercedes vermelho, sai atirando para todo lado pelas ruas do Rio. 

Assim como Kátia Flávia, nos outros seis contos do livro desfilam alguns dos mais bizarros e interessantes personagens da literatura brasileira nos últimos 30 anos. “Facada Leite-moça” apresenta a trágica história da canadense Viviane Vancouver, a mais famosa fotógrafa hiper-realista do mundo, que dirige sua Ferrari, enquanto é procurada. “Cabeleira loura entremeada por tranças de poliuretano vermelho, escorpião tatuado na base da espinha, coxas de quem faz jazz, boca carnuda ideal para batom forte, imensos olhos azuis. Tornou-se exímia repórter da decadência humana nos becos urbanos”. Em “Copacabana Hong-Kong” o escritor apresenta o bairro nobre carioca como um lugar transformado “em um território off-off estado carioca, um vácuo-financeiro-industrial dominado por mini-indústrias paralelas. Mini-indústrias camufladas por açougues, armarinhos, lanchonetes, cabelereiros etc. de dia é açougue. De noite é mini-indústria robótica, química, zoológica etc”. 

Para Fawcett, Copacabana era o marco zero do contrabando bizarro, território livre de multinacionais investimentos mafiosos. “É uma espécie de bairro-purgatório e nos seus edifícios e ruas pode-se encontrar a mais contrastante e extravagante fauna humana: náufragos existenciais sem perspectivas sociais, ricaços discretos, pivetes poliglotas, vândalos genéticos, desgraçados crônicos, subs em geral, apavorados membros da seita consumista classe média-falida vivendo a barra pesada dos impostos civis e da decadência socioeconômica, camelôs científicos, travestis suculentos. A Copa Hong-Kong é controlada por superdotados americanos, como Derek, astrofísico”. E segue a história: “Toda quinta-feira chegam na praia do Lido embarcações escoltadas por surfistas militares. É o boat-people internacional. O primeiro mundo resolveu expulsar, jogar nos oceanos centenas de imigrantes delinquentes”. 

Guerrilhas urbanas, genocídios, massacres de grupos sociais, no mundo caótico e imaginativo de Fawcett o leitor é arrastado para descrições inusitadas e fascinantes. O conto Vanessa Von Chrysler se passa no centro de Munique, capital da Baviera, onde funciona o Instituto Médico Legal Arqueológico, especializado na recomposição e restauração de mortos especiais, “cadáveres ilustres muito bem tratados por congelados norte-americanos, gente que trabalhou com Michael Jackson, Howard Hughes, Paul Getty I e Walt Disney. Corpos que são leiloados no mercado negro. Dentre eles, Vanessa, uma autêntica tirolesa em extinção, capturada e congelada pelos nazistas em 1940. Descendente direta das primeiras fêmeas alemãs, germanas do começo, que pertenceu a uma dessas comunidades ortodoxas isoladas em lugares ermos”. Acaba comprada por Bruno, um antiquário de Copacabana e orientado a não descongela-la nunca, por segurança. Mas ele se apaixona pela moça e a desperta. E ela sai detonando tudo. 

Na trama “Valdemar e Chacininha”, o primeiro é um assassino psicopata baiano que carrega na bolsa a tiracolo pedaços de estátuas de Exu impregnados de pólvora para explodir os corpos de suas vítimas, além de garrafas de aguardente e cola superbonder – para colar pintos, vaginas e bocas. Ataca principalmente casais em atos libidinosos em lugares ermos. Chacininha é o nome da garota-mascote que acompanha um grupo de extermínio formado por dez matadores. Ela deve fazer sexo com todos diariamente, como e onde quiserem. A bola da vez é Giselle, que adora tirar fotos como uma Tarzan feminina pisando nos cadáveres para a posteridade. Até seu caminho se cruzar com o de Valdemar. Em “Vanuza e Rachid”, a protagonista Vanuza Gina diverte gerações de homens como dançarina em uma boate sobre um barco no Rio Amazonas, com seu corpo de loura descomunal, e se envolve com o fundamentalista ecológico Rachid. “Básico Instinto”, que encera o livro, é um ensaio sobre os impulsos bestiais que há milhares de anos impulsiona gestos, atitudes e comportamentos das civilizações, inclusive as mais contemporâneas. Um texto que, de certo modo, justifica as atitudes de todos os personagens da obra. 

As colagens geniais de gírias urbanas com a poluição visual das placas de lojas e da sinalização, dos outdoors e dos programas de TV, na era pré-internet, sucedem-se num ritmo narrativo acelerado intenso, alucinado na maior parte do tempo. Situações absurdas do cotidiano, carregadas de humor e de um engenhoso jogo de palavras, muitas delas neologismos em série criados para dar ênfase a situações e contextos. Não quer dizer que a narrativa seja confusa, enigmática, cheias de simbologias incompreensíveis. Pelo contrário. A riqueza vocabular dos textos de Fawcett é empolgante como leitura. As referência de cultura popular – cinematográfica e televisiva – são facilmente identificáveis. Como se vê numa passagem: “Rosto meio-vera meio-basinger meio-fischer meio-kim meio angélica aos trinta e dois. Estampa de quadro pré-rafaelita reproduzida nos ladrilhos de pés sujos ou toalhas de Camelo Copacabana. Linda Katia Flavia. A lenda da Godiva suburbana, carioca, nua cavalgando pelas esquinas”. 

Quando “Básico Instinto” foi lançado, todos os morros cariocas com favelas estavam sob o domínio de facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas. Bandidos importavam armamentos de guerra, controlavam a circulação nas favelas, fazia execuções cruéis para impor respeito, num cenário em que a polícia era mal paga e infiltrada de agentes corruptos. Arrastões aconteciam nas praias e vias expressas, captadas por câmeras de TV, e a população tentava não sair muito de casa para não ser vítima de balas perdidas. Entre placas de sinalização e logomarcas luminosas gigantes de lojas, supermercados, postos de gasolina e fachadas de lojas chiques, balas flamejantes cortavam os céus como no videogame. Tudo parecia perdido. O Brasil era um exemplo mundial de incompetência para combater o crime. “Básico Instinto” impõe o caos nesse contexto como uma obra premonitória. 

O que menos importa em Fawcett é a racionalidade ou a seriedade das histórias, cujas sequencias de crime causariam inveja ao diretor Quentin Tarantino, mestre da estética da violência no cinema. O autor, como nenhum outro escritor brasileiro, captou como um falcão em voo todo esse universo à beira da destruição e fez um dos melhores romances brasileiros nas últimas três décadas. Falta só a crítica reconhecer isso.


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