[36 de 100] Fantasias que podem virar pesadelos, segundo Will Self

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A primeira edição lançada no Brasil do livro “Cock & Bull”, do escritor inglês Will Self, pela Geração Editorial, em 1994, trazia um subtítulo mais direto e coerente com seu conteúdo altamente subversivo e provocante: “Histórias de Phadas e Phodas”. Isso mesmo, com “ph”. O volume revisto em 2002 pela mesma editora amenizou o complemento da capa, que ficou assim: “Histórias para Boi Dormir”. Mas trazia, na belíssima ilustração, uma discreta pintura erótica que exigia uma atenção maior do leitor para ser compreendida e relacionada com o conteúdo da obra: um homem nu de costas, ao lado de uma mulher, apoiando-se na árvore do pecado, segundo a versão bíblica. Na dobra da perna esquerda do rapaz, vê-se uma saliência que lembra os lábios de uma vagina. E são mesmo. Ela, que devora a maçã, como se fosse Eva, apesar das formas femininas, talvez seja confundida com um travesti, pois tem na virilha um pequeno pênis em repouso. Um livro de ficção sobre homossexualismo? De jeito nenhum.

O próprio Will Self definiu “Cock & Bull” como uma obra exclusivamente satírica, porém preocupada com a identidade de modo geral. Quando publicou esse romance em duas partes – ou seria um par de novelas, apesar de se cruzarem? –, com apenas 29 anos de idade, o autor já era razoavelmente conhecido na Inglaterra como cartunista do jornal “New Statesman”. Depois, tornou-se um franco colunista que se destacou pelas provocações e sacarmos sobre a política e os costumes londrinos e tinha causado rumores de ter um grande talento como escritor quando publicou a seleção de contos “The Quantity Theory of Insanity”, de 1991. O romance de estreia veio para confirmar seu estilo original nessa mesma linha entre o absurdo e o engraçado. É, provavelmente, seu livro mais facilmente compreensível e de leitura mais fluente. O catatau “Símios”, que veio em seguida, embora genial, é árido demais, difícil de ser atravessado – ao que parece, propositadamente, para deixar o leitor confuso sobre condição do protagonista: tudo é real ou delírio do personagem? 

 Self surpreendeu crítica e público ao fazer de “Cock & Bull”, aparentemente, uma sátira picante e ousada de “A Metamorfose”, do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), sobre o drama de um pacato cidadão que acorda e descobre que virou um inseto gigante e fica desesperado com o imponderado que lhe cai no colo, sem saber o que fazer. O autor inglês, então, imagina duas situações não tão radicais, mas que mexem demais com o imaginário e as fantasias sexuais de boa parte das mulheres e dos homens de todo o planeta: e se um dia começasse a nascer um pênis numa fêmea e uma vagina num macho? Como eles lidariam com isso? Claro que não é tão simples assim com os personagens que passam a viver esses dois fatos extraordinários. À primeira vista, tudo acontece de modo surpreendente, mas de sem maioria alardes. Depois, com o tempo, os personagens acordam com um órgão sexual diferente do seu e cada dia mais sobressalente e agem numa boa, como se nada tivesse acontecido.

Em “Cock – Uma Noveleta”, Carol é uma jovem que abandonou o curso de uma obscura faculdade de sociologia, depois de cumprir um terço das disciplinas. Sentia-se menos mulher diante do namorado Dan, com quem se casaria aos 19 anos, e passou a atacá-lo com chavões feministas, até se envolver com uma lésbica, que lhe dá muito prazer. “A vida de Carol e Dan era exatamente como uma obra literária: rala e encapada com o papel barato da existência”. Até que sua rotina é arrastada para algo fantástico que começa a desenvolver em seu corpo. “Carol percebeu que estava começando a gostar da convivência com o seu membro adquirido.” Mais adiante, diz o narrador: “Para brincar com seu novo membro, ela precisou puxar com força o elástico do cós. Apertando e desapertando seus fundilhos, ela pode sentir uma veia interna, que era, com certeza, um incipiente canal urinário”. O estranho ser, ela não podia imagina, transformaria ela numa estupradora. 

Na trama de “Bull – Uma Farsa”, Self vai direto ao ponto, bem ao estilo Kafka. Começa assim: “(John) Bull, um rapaz encorpado e musculoso, acordou certa manhã e não levou muito tempo para se dar conta de que, enquanto dormia, adquirira outra característica sexual primária: a saber, uma vagina. A vagina brotara atrás de seu joelho esquerdo, dentro da covinha macia e flexível localizada no ponto onde terminam os tendões. É quase certo que Bull não a percebera tão cedo, não tivesse ele como prioridade, logo ao despertar, o hábito de se inspecionar, explorando cuidadosamente todas as suas curvas e fendas. Assim, deitado de costas, com as pernas para cima, em posição de bicicleta, e tendo o edredom como uma bolha inflada, envolto na região que vai do baixo abdômen à forquilha das pernas, Bull sentia seu corpo e ela sentia seu corpo”.  O novo orifício de Bull, entretanto, acabaria por ser estuprado pelo seu próprio médico, o excêntrico Doutor Margolies. 

Duas histórias assim deram o que falar e deixou os críticos meio perdidos sobre como rotulá-lo – se uma obra original ou uma sátira ao texto fafkaniano. De qualquer modo, havia outras leituras e implicâncias. “O livro, de forma alguma, é antifeminista, anti-gay ou anti-semita”, explicou Self, ao se defender de acusações. Ele lembrou que toda obra profundamente satírica está engajada na causa da reforma moral a que se propõe. A revista “Kirkus Reviews” classificou “Cock & Bull” como “sinistramente fascinante; pequenas novelas que perscrutam o mundo fantasmagórico da ambigüidade sexual e a ambivalência moral”. E completou: “Selvagemente satírico e visceral, tão ameaçador quanto chocante.” O ponto de partida é tão insólito, como observa o editor na apresentação, que torna o livro difícil de ser descrito. A única coisa que dava para dizer era que se tinha ali algo diferente de tudo o que já se lera até então.“Imagine um filme baseado em ‘A Metamorfose”, de Kafka, com roteiro de William Burroughs e direção de David Cronemberg e você terá “Cock& Bull”, escreveu o “The Sunday Times”, de Londres, que colocou o escritor como a nova sensação literária que provocou um abalo sísmico na literatura inglesa e mundial. 

Will Self também foi comparado a William Shakespeare (1564-1616), o maior dramaturgo de todos os tempos, pela impressionante habilidade na condução da narrativa, que transporta o leitor, com eficiência, para o exato ponto aonde quer chegar, num ritmo crescente e funcional. Sem qualquer aparente pretensão de construir relatos mitológicos pós-modernos, semelhantes aos da antiga Grécia, em que homens acordavam com um órgão sexual feminino entre as pernas e vice-versa, ele não pareceu interessado em compor tratados freudianos ricos em significados simbólicos, quando se explora as fantasias sexuais de homens e mulheres. A intenção mais perceptível de suas duas história é a da provocação do leitor. Ou criar-lhe certo desconforto, ao induzí-lo a se colocar num dos papéis absurdos criados por ele para imaginar que tipo de reação teria numa situação assim. 

No mundo dos personagens bizarros de Will Self, os protagonistas se comportam como se fossem deslocados para uma realidade surrealista, a um mundo de absurdos, porém dentro de uma aparente normalidade. Especialistas concordaram que, de fato, as duas novelas evocam o universo de André Breton (1896-1966) e Salvador Dalí (1904-1989), expoentes do movimento surrealista na Europa. Mas, como informa o texto de apresentação da edição brasileira, em oposição ao Surrealismo, a forma do texto de Self nada tem de mecânica ou ocasional. Pelo contrário, por causa da sua radical originalidade, o livro se torna difícil de ser descrito com precisão, de ser encaixado em algum rótulo, tendência ou escola literária. Como experiência literária, “Cock & Bull” é um daqueles livros que grudam na mente como algo inusitado, surpreendente. 

Self completou 50 anos de idade em 2013. Ele se formou em filosofia em Oxford e dizia sem maiores constrangimentos que foi viciado em drogas pesadas desde os doze anos de idade. Assim definiu seu estilo: um casamento arrebatador entre a língua de Shakespeare e a linguagem pop esquizofrênica do underground londrino. Um estilo que fez ele ganhar o rótulo de “enfant terrible” da literatura inglesa, discípulo de mestres como Martin Amis, Julian Barnes, Wiliam Burroughs e George Bataille. Aliás, sobre ele, Amis escreveu: “O mundo de Will Self é peculiar. É, ao mesmo tempo, exótico e institucional, cheio de temores e desalinhos, e de um humor inteiramente inesperado”. O “The New York Times” o apontou, por causa de “Cock & Bull” como “a última sensação literária da Inglaterra” e que ele “possui todos os dons que um escritor satírico pode desejar: um olho para o detalhe revelador, um ouvido para as pretensões do fraseado contemporâneo, uma habilidade para escrever uma prosa muito peculiar, que fulgura inteligência e perspicácia”.


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