[37 de 100] A tênue fronteira entre a loucura e a lucidez, segundo Josué Montello

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O romance “O Baile da Despedida – O Adeus da Monarquia na Grande Noite da Ilha Fiscal”, do romancista maranhense Josué Montello (1917-2006), lançado em 1992, pela Editora Nova Fronteira, é o que se poderia chamar de um livro de personagem. Um só, praticamente. E que personagem. Chama-se Catarina de Aragão Arantes, que existiu de fato e é a protagonista de uma dos mais tristes e pungentes tramas da literatura brasileira. O mote para a trama é um fato histórico verídico e pouco lembrado, ocorrido no dia 9 de novembro de 1889, na Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, a seis dias da Proclamação da República. Por isso, ficaria conhecido como o último grande acontecimento social do Império brasileiro – claro que seus organizadores não sabiam que um golpe que derrubaria o regime estava a caminho, quase virando a esquina.

A gigantesca festa de tanta fartura e luxo foi perpetuada num quadro de proporções monumentais pintado por Aurélio de Figueiredo (1856-1916), que faz parte do acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Sem ares de despedida, o Baile da Ilha Fiscal – antes conhecida como Ilha dos Ratos, localizada no interior da baía de Guanabara, bem próxima e em frente ao centro histórico da cidade do Rio – teria reunido cerca de seis mil convidados, convocados por ordens do Imperador Dom Pedro II (1825-1891), formados pela nata da nobreza e da elite nacionais, que incluía empresários, intelectuais e políticos. Montello não retrata a festa em detalhes por muitas páginas, mas revela sua importância histórica, seu glamour e a usa, no primeiro momento, para contar – e servir de mote – a curiosa história de Catarina, mulher descrita como bela e jovem, filha de família nobre e abastada do Maranhão e que, portanto, deveria naturalmente participar do baile. Mas nunca se soube, de verdade, se isso aconteceu, apesar dela passar a vida a afirmar ter ido à festa. 

Tal observação poderia não passar de um mero capricho ou vaidade sua. Mas a festança se transformou numa obsessão, num delírio, para Catarina. Considerada louca pela própria família pelo seu comportamento fora dos padrões e atitudes nada convencionais, ela foi tratada pelo famoso psiquiatra baiano Juliano Moreira (1873-1932), que dirigiu o hospício em que Catarina esteve internada durante onze anos, no Rio de Janeiro. Ele acreditava que ela não mentia sobre ter ido à Ilha Fiscal. Ou melhor, não que realmente ela tivesse participado do baile, o que ele duvidava, mas era uma “verdade” dela e, portanto, tal verdade ele respeitava. No começo da trama, Montello revela que naquele distante novembro de 1889, Catarina havia se apaixonado pelo oficial chileno Benito Alvarez López, capitão de mar-e-guerra chileno e com quem ela deveria ter ido ao baile. A única prova que ela guardara do evento era o convite com a marca real. Mas tudo permaneceria como um mistério, uma possível fantasia ou delírio, um rasgo de loucura sua. 

Esse desequilíbrio foi identificado porque ela, ao longo de mais de seis décadas, a costurar, a mão, cópias do vestido que teria usado no baile, e usava como referência a roupa original, que exibia numa vitrine, em uma das salas de seu sobrado. A tarefa de refazer a mesma peça por tantas vezes se tornou uma obsessão na relembrança de um passado que poderia ser traumático – como se descobriria depois – e um sinal claro de desajuste comportamental. Ninguém, contudo, acreditava em sua história. Por isso, não recebia qualquer pessoa em sua casa, a não ser o seu médico. Catarina, ao longo da narrativa, repete sua história e confecciona seu vestido em momentos de lucidez e delírio num misto de alegria incontida por um evento que ainda lhe parece palpável e possível, mesmo tanto tempo depois. Mas não esconde a dor mesclada na saudade de um passado esfuziante, de gala e de glória. Assim, pode-se também questionar se o homem de sua vida, o militar chileno, existiu mesmo ou resultou da loucura. Na mente da protagonista, a noite do baile se torna perpétua e cada dia que vive está preso ao calendário como se fosse véspera de 9 de novembro de 1889. Para isso, ela preserva vivos a história do acontecimento, os trajes, o vestido original, as joias e os sapatos, a forma de trajar-se, a postura, os jornais da época guardados em baú. 

O narrador da história é um jornalista de uma publicação chamada “Nossa Revista”. Ele e sua noiva, Denise, descobrem a história e decidem investigar se Catarina esteve mesmo ao evento ou foi vítima de uma grande decepção amorosa – esperou o amado, que não apareceu para levá-la à festa. Ele parte numa busca obsessiva de algum documento, uma foto, um bilhete, um papel que seja para comprovar a afirmação de sua personagem. Quando faz isso, Catarina ainda está viva, tem mais de oitenta anos e vive confinada, isolada do mundo. O jornalista descobre que as cartas trocadas entre certo Zuza, no Rio, e a mãe de Catarina, em São Luís, somente reforçam a loucura da mulher. Para confundir tudo, porém, a personagem toma atitudes que questiona se loucura não seria também algo estabelecido por regras e conceitos morais, sociais e econômicos. Até que ponto ela seria destrambelhada pelo fato de aproveitar a ausência do pai, que visitava uma de suas fazendas, e dado liberdade a todos os escravos da família, imitando a assinatura do patriarca. 

Catarina acaba internada no hospício, que ela chegou a ajudar financeiramente por mais de uma vez, quando a instituição não recebia as verbas do governo para fazer frente às elevadas despesas com os internos. Na verdade, rica e bonita, ela sempre foi dona de seu nariz e muito avançada para a sociedade machista daquela época. Tanto que viajou sozinha para o Rio, e, decidida a ter um filho, entregou-se ao oficial chileno, que era casado em seu país. Mas perdeu o bebê. Determinada a ter o amante a seu lado, foi ao Chile, mas Benito havia morrido. De volta ao hospício de sua cidade natal, magra, abatida e despenteada, essa incrível criatura estava condenada a amargar a solidão eterna. De estilo límpido, com uma elegância inconfundível, Montello constrói uma história que vai além do fato histórico, quer questionar os limites entre onde termina a sanidade e começa a loucura – quase sempre mostrada por comportamentos fora dos padrões na literatura, e não dissimulada, difusa, como acontece com Catarina. 

A trama segue, com elementos reais misturados com uma narrativa imaginativa e aliciante do autor, que mantém o suspense até o fim, de modo a prender o leitor e a confundir o leitor. Até chegar a um desfecho surpreendente.  Escritor nato, conhecido por sua prosa elegante e fluída, Montello levou o crítico Wilson Martins a afirmar que ele escrevia romances clássicos, na linha de Machado de Assis e de Eça de Queiroz, sem a preocupação em ser original. Ele mesmo admite, sem nenhum problema, que ignorava as inovações estéticas dos últimos 50 anos.  “Escreveu romances extraordinários, em particular Os Tambores de São Luís“, observou Martins. Em “O Baile da Despedida”, porém, ele se mostra original e ambicioso, em um romance histórico de raro valor. Não há como não se compadecer do destino de Catarina. Ele constrói sua narrativa com a meticulosidade de quem faz uma toalha de renda, tamanha a perfeição da história. 


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