[38 de 100] A antropologia da malandragem carioca, segundo Marques Rebelo

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O mais conhecido romance do escritor carioca Marques Rebelo (1907-1973) – pseudônimo literário de Edi Dias da Cruz – é “A Estrela Sobe”, lançado em 1939, sobre a vida de uma garota suburbana saindo da adolescência que quer ficar famosa no rádio e acaba por se deparar com um mundo sórdido e marcado pela troca de favores condenáveis, inclusive sexuais. O chamado rádio comercial, que se tornara rapidamente a grande fábrica de ilusões dos anos de 1930, surgira havia apenas sete anos, mas já mudara o comportamento de muitos brasileiros, além de criar nossas primeiras celebridades musicais – Cármen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis, Orlando Silva etc. Um assunto, aliás, que o autor conhecia como poucos. Frequentador assíduo da boemia carioca, Rebelo sabia bem das intrigas e dos golpes promocionais que aconteciam no meio musical. Assim, desglamourizou um meio em que o chamado “teste do sofá” já era uma prática recorrente. O livro deu o que falar, na época.

 Seu primeiro romance, “Marafa”, publicado quatro anos antes, também tratava de modo pouco fantasioso o universo dos cariocas. Estruturado de modo eficiente e atraente, com 84 capítulos que vão de uma a quatro páginas, o volume trazia como título um termo em completo desuso no século XXI, mas quer dizer “vida desregrada, licenciosa, libertina”, de acordo com o dicionarista Aurélio Buarque de Hollanda (1910-1989). Define bem o universo em que são situados os personagens suburbanos principais que aparecem na trama, marcados, sempre, por uma existência sofrida e um destino que anda de mãos dadas com o trágico. São dois os protagonistas, o assalariado público José e o cafetão Teixeirinha, malandro dos mais perigosos. Eles são cariocas pobres que sobrevivem com jogo de cintura – e algumas tramóias, no caso do segundo – em meio à miséria que lhe impõem a capital da República, em franca ebulição imobiliária.  

José é um exemplo de cidadão: honesto e trabalhador. Correto na repartição onde trabalha, ele recebe um salário miserável, vive a se indignar com o descaso dos políticos, que copiam leis trabalhistas de outros países, mas não conseguem aliviar os abusos e desmandos dos patrões. Mas não desiste de reclamar e de se indignar. Quer vencer na vida e aposta no boxe a esperança de dias melhores e, assim, poder se casar com Sussuca. Teixeirinha se encaixa no perfil do malandro que cruza a linha entre as pequenas contravenções, a prostituição e o mundo barra pesada do crime. Por isso, acumula diversas passagens pela polícia, cada vez mais graves. Além de pilantragens na praça, é amante e explorador de Risoleta, mulata de grandes dotes, prostituta conhecida, e diretor de uma escola de samba – da qual é afastado e substituído, sob acusação de desvio de recursos. Tipos, enfim, que Rabelo buscou nos bares e nas amizades que fez nos morros para dar forma na ficção. Até que um dia o caminho desses dois homens tão opostos se cruza de modo impactante e transformador.  

Quando foi lançado, “Marafa” ganhou o Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, por causa do impacto que causou no meio literário – que vivia o florescer do romance regionalista, marcado por autores como Jorge Amado (1912-2001) e José Lins do Rego (1901-1957). Em tom subversivo e desafiador, Rebelo escreveu no curtíssimo capítulo 11 o que poderia ser considerado a síntese de seu livro e um exemplo da qualidade literária do seu texto: “Mendigos estendem as mãos imundas, mostrando chagas, andrajos e deformidades. Mendigas dão maminhas mirradas a esqueletos de crianças. Inválidos, cegos, aleijados, portadores de elefantíase, suspeitas caras de leprosos, há mendigos nas esquinas, nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das igrejas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos das praças. Há tantos mendigos e falsos mendigos como há pardais. E há a Comissão de Turismo, convidando o mundo, com maus cartazes, para conhecer as belezas naturais da capital maravilhosa.” E assim ele constrói uma narrativa urbana explosiva, de caráter social, para não dizer socialista, em que o autor toma partido dos fracos e oprimidos, ao mesmo tempo em que os vitimiza e faz críticas contundentes à degradante vida nos morros e a omissão dos governantes, além de prenunciar que o crime começava a tomar conta e a estabelecer um poder paralelo.  

Marques Rebelo, assim como fizeram nos anos de 1800 escritores como Machado de Assis (1839-1908), Manuel Antonio de Almeida (1831-1861) e Lima Barreto (1881-1922), produziu o que há de mais expressivo na literatura brasileira sobre a vida urbana do Rio no começo do século XX. São tipos desajustados social e moralmente, como prostitutas, cafetões, caixeiros viajantes de armarinhos, funcionários públicos, fuzileiros navais, boxeadores, mulatas, mocinhas sonhadoras e casamenteiras do subúrbio. Entre conflitos verbais, socos e pontapés, eles dividem espaço numa cidade caótica e febril, com sua vida noturna intensa, sua sensualidade e seus vícios e crimes. Na colagem de tantas aventuras e desventuras, ele compõe um mural da metrópole individual e coletiva, pessoal e anônima. “Sua prosa urbana, passada em delegacias, cafés e bulevares, era um saudável contraponto à dos mestres do romance nordestino, que então começava a imperar”, observa Ruy Castro.  

Se por um lado os problemas e as misérias da cidade são denunciados, por outro o autor exaltam as principais paixões do carioca como temas condutores da história – em especial, o Carnaval e o futebol. Por isso, quase 80 anos depois de seu lançamento, “Marafa” se mostra um romance vigoroso e atual, indicativo de pouca coisa mudou o melhorou na decadência saga carioca contra o crime, que Rebelo revelou de modo competente. Com fidelidade ao tempo presente, os anos de 1930, ele retrata o povo e o dia a dia de uma cidade ainda provinciana e centro gerador de cultura e da vida política do país. A boemia, as malandragens, as brigas, os bate-bocas são mostrados com linguajar característico, atualíssimo, por meio de um estilo empolgante e humorístico em diversos momentos, mesmo nos mais trágicos. O homem carioca, enfim, aparece como personagem e tema e o autor revela os entretenimentos e as lutas cotidianas – os prazeres e as angústias.  

Para Ribeiro Couto, “na maneira incisiva e calma, na atitude meio zombeteira, meio piedosa, a posição espiritual de Marques Rebelo é a de um continuador da tradição desses mestres admiráveis da novela urbana, homens para quem a vida citadina de todos os dias existe – a vida humilde, burguesa, monótona, difícil, de toda gente e de todos nós”. Otto Maria Carpeaux escreveu que dizia que “a matéria prima de ‘Marafa’ são justamente as drogas que envenenam esse povo carioca, anestesiado pelo carnaval, pelo futebol, pela mulata, pelas leituras falsas e pela baixa politicagem”. Mário de Andrade ressaltou que o autor “era o nosso criador mais pessimista, uma personalidade sofrida e trágica”. O crítico Jardel Dias Cavalcanti ressalta que esse passeio pela vida cotidiana de personagens suburbanos ou de classe média em ascensão e o confronto de seus desejos com as exigências de uma vida urbana em formação justificam o valor literário de “Marafa”. E esses são apenas dois aspectos de maior relevância. Outro é o seu caráter cinematográfico, visual pela riqueza descritiva, mas que jamais despertou interesse de produtores e diretores. Uma pena. Não sabem o que estão perdendo.


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