[39 de 100] A antiutopia que veio das formas, segundo Edwin Abbott

PLANOLANDIA_1231591913PNuma das passagens finais de “Planolândia – Um romance de muitas dimensões”, livro de caráter essencialmente satírico do escritor inglês Edwin Abott Abott (1838-1926), o personagem que narra a história está preso. Sem perspectivas de obter a liberdade algum dia, resta-lhe consolar com seu trágico destino. E ele faz uma reflexão: “Vivo da esperança de que estas memórias, de alguma maneira, não sei como, possam apontar um caminho para a mente da humanidade em alguma dimensão, e (venha) despertar uma raça de rebeldes que se recuse a ser confinada a uma dimensão limitada”. Qualquer leitor de ficção científica por menos dedicado que seja, certamente já leu alguma passagem parecida em muitos livros do gênero. A atualidade da obra de Abbott, publicada há mais de um século, faz crer que ele tenha sido influenciado por autores marcados por uma visão pessimista do futuro, a partir da idealização de regimes autoritários numa época futura.

Alguns exemplos dessas referências anti-utópicas – pode-se chamar assim – apareceriam nos romances “1984”, de George Orwell (1903-1950); “Nós”, de Eugene Zamiatin (1884-1937); “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1894-1963); O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle (1912-1994); ou “Blade Runner = O Caçador de Androides”, de Philip K. Dick (1928-1982). O curioso entre esses autores consagrados e o livro de Abbott está no fato de que este antecedeu a todos eles em pelo menos 40 anos, o que faz de seu livro um dos pioneiros do subgênero “futuro-trágico-para-a-humanidade”. Escrito na Inglaterra da Era Vitoriana, “Planolandia” saiu pela primeira vez, por uma editora londrina, em 1884 – ou seja, há exatos 130 anos atrás. Trazia, então, um discurso de teor subversivo para um país que vivia de paradoxos. Enquanto ampliava suas conquistas territoriais, a coroa inglesa declarava um retrocesso moral contra a pornografia e a prostituição. Como o romance foi reeditado dezenas de vezes na Inglaterra e traduzido para nove idiomas, muitos de seus conceitos básicoscertamente podem ter influenciado alguns dos autores citados, mesmo que indiretamente.

Vários filmes foram feitos a partir da história de Abbott, nenhum de grande sucesso. O mais recente deles foi o longa-metragem em 2007 chamado “Flatland”, com direção de Dano Johnson e Jeffrey Travis. Outros esforços foram curtas ou experimentais para dar movimento a esse complexo universo criado pelo autor, incluindo um narrado pelo ator cômico Dudley Moore, e um curta-metragem com Martin Sheen intitulado “Flatland: The Movie”. Disponível na Internet com texto integral em inglês – está em domínio público –, a obra de Abbott só saiu no Brasil em 2002, pela Conrad Editora. Ou seja, num espaço de 118 anos. Tempo suficiente para que os leitores brasileiros conhecessem os outros escritores citados, sem noção de que “Planolandia possa tê-los inspirados, por ele não constuma ser citado com relevância. Mas esse detalhe não conseguiu tirar a originalidade criativa e marcante do autor inglês. Além de precursor, Abbott fez uma obra explosiva pelo seu caráter libertário, a partir do relato filosófico e matemático de uma sociedade rígida, apoiada num sistema de divisão de classes cuja conduta é regulada por um poder autoritário.

Abbott defende em forma de parábola uma alternativa amparada na liberdade de escolha, contra a opressão social e pela igualdade de direitos entre sexos. Faz isso de forma nada convencional, entretanto. Sua complexa e fascinante história – que exige pouco da imaginação do leitor no sentido de idealizar os cenários e personagens – se passa num planeta bidimensional, habitado por figuras geométricas de diversas formas, tais como as conhecemos na matemática e na física ensinadas no curso básico. Os habitantes de Planolandia são separados com direitos e privilégios, de acordo com o número de lados que possuem em seus corpos. Cada linha lateral a mais representa um passo rumo ao topo da pirâmide social – e de privilégios, claro. Mais de metade do livro é aproveitado pelo narrador – Sr. A. Square, um polígono de quatro lados – para apresentar uma minuciosa descrição do seu mundo, com ênfase na organização política e social.

O sonho de Square – membro da casta social dos senhores e profissionais –é visitar a um mundo unidimensional, chamado de Grande Linha e habitado por “pontos brilhantes”. Para isso, tenta convencer o monarca ignorante do reino onde vive a permitir que parta. Mas descobre que é impossível de fazê-lo ver do lado de fora de sua linha eternamente em linha reta. Um dia, ele recebe a visita de uma esfera tridimensional, que  não consegue compreender até que visualiza o mundo tridimensional conhecido comoEspaçolandia. Square descobre que a esfera – que não tem nome, como todos os personagens do romance) – visita Planolandia na virada de cada milênio para introduzir um novo apóstolo para a ideia de uma terceira dimensão, na esperança de cooptar a população sobre a existência de Espaçolandia. Desse lugar, as esferas observam os líderes de Planolandia secretamente e preparam um plano para fazê-los reconhecer a existência da esfera. Sabem, enfim, que o líder vai mandar eliminar qualquer um flagrado pregando a verdade sobre Espaçolandia ou fale sobre a terceira dimensão. Após um pronunciamento ameaçador, rebeldes são massacrados ou presos, de acordo com castas a qual cada um pertence – quanto menor, maior a punição. Square, então, ao chegar ao mundo desconhecido, abre sua mente para novas dimensões e tenta convencer a esfera alienígena da possibilidade teórica da existência de uma quarta (e quinta e sexta) dimensão espacial.

Do mesmo modo que no mundo tridimensional dos humanos, em “Planolandia” a submissão do sexo feminino é condição para preservar o equilíbrio – um reflexo da época em o livro foi escrito, sem dúvida. A inferioridade sexual surge já na forma física: as mulheres não passam de um risco. Está claro que Abbott o faz não por acreditar nessa condição de “inferioridade” feminina, mas para denunciá-la, a partir de seu espírito libertário, tão presente no romance. Enquanto isso, em dois momentos apenas a normalidade tediosa e em preto e branco de Planolandia sofre alguma ameaça. No primeiro, quando ocorre a Rebelião Cromática, movimento que pregava a igualdade de direitos entre as classes a partir do uso da cor e sua extensão às mulheres. A iniciativa foi sufocada depois de um massacre com milhares de vítimas. Uma nova ameaça surge quando o Sr. Square começa a ter visões de uma esfera que aparece e desaparece. Uma voz, então, diz-lhe que seu mundo não passa de um pálido reflexo de um mundo maior, melhor e mais elevado porque possui três dimensões. A difusão dessas idéias, claro, será vista com temor pelo regime imposto pela força.

Uma leitura possível da obra de Abbott é a de que se não pensava em subverter a ordem em seu país, ele pretendia compor um manifesto contra o autoritarismo do estado e condenar a divisão da sociedade em castas a partir de critérios econômicos, religiosos, racistas e sexistas. Autor de vários livros de teologia e biógrafo do político, filósofo e ensaísta inglês Francis Bacon (1561-1626), o barão de Verulam, ele adquiriu reputação quando lançou “Shakespeare Grammar”, em 1870, uma gramática sobre termos e personagens do dramaturgo inglês. Não era um político revolucionário ou um escritor engajado no socialismo, tão em voga na época. Pelo contrário, vinha de uma origem pouco suspeita, já que levava uma vida pacata como teólogo cujo passatempo era a matemática – o que explica  o fato dele ter dado formas geométricas aos personagens. Sua reputação jamais seria abalada pelas ideias reformistas que defendeu em seu romance, numa época de retrocesso às liberdades de expressão na Inglaterra, ancorada num rigoroso puritanismo quanto a temas tabus relacionados a sexo e ao casamento. De espírito libertário, Abbott foi um pioneiro na reforma educacional de seu país, ao permitir o acesso das mulheres aos estudos superiores. Seu espírito e convicções, de alguma forma, aparecem ao longio da consistência de “Planolandia”.


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