Um bom garçom é mais difícil de encontrar do que se imagina. O interessado nesse ofício precisa ter capacidade, aptidão e amor pela profissão. Além de paciência com fregueses bêbados, chatos ou inconvenientes – às vezes, tudo vem num sujeito só. E um pouco de ambição, se quiser fazer carreira na área. Guardar o nome, tratar bem, ser solícito, passar confiança e intimidade até certo são imprescindíveis. A recompensa, claro, vem em forma de gorjetas mais generosas. Todas essas qualidades sobram no baixinho Ditie, morador da cidade de Praga, capital da atual República Tcheca, no período entre as duas guerras mundiais, na primeira metade do século XX. Com apenas 15 anos, empregou-se como ajudante de garçom no conceituado Hotel Praga Dourada. Ia bem no trabalho e uma série de contratempos e fatos inesperados alimentaram, aos poucos, sua obstinação em ganhar dinheiro e a admiração de todos.
Desse modo, Ditie poderia sair o mais breve possível daquela vida de humilhações que levava desde que começara a ganhar o próprio sustento – seu primeiro patrão o submetia a castigos físicos regularmente. Para o jovem, quase adolescente, ser garçom tinha muito de nobreza e, portanto, devia se empenhar ao máximo para atingir a perfeição. “Meu pai costumava dizer que, se eu tivesse um objetivo na vida, tudo daria certo, porque eu teria uma razão para viver”, dizia a se mesmo, como um mantra. Depois do primeiro emprego, graças à indicação de um vendedor, mudou-se para o Hotel Tichota, em Strancice, em Praga. Ali, continuou a cumprir sua sina de subserviência absoluta como ajudante de garçom. Como um cão, em pouco tempo foi domesticado para atender de imediato os apitos do patrão. Mesmo assim, não esmoreceu e continuou na função. Seis meses depois, porém, acusado injustamente de ter provocado confusão entre clientes. Acabou demitido.
Na estação de tem, quando ia para casa, o desempregado Ditie reencontrou o mesmo vendedor que o ajudara antes. Ele, mais uma vez, recomendou-o ao Hotel Paris. A sorte ajudou de novo e o rapaz ocupou a vaga de garçom que tivera um surto e destruíra parte do estabelecimento – o restaurante do hotel. No novo emprego, Ditie conheceu Skrivanek, chefe dos garçons, que carregava a reputação de ter servido ao rei da Inglaterra – a maior honra que um garçom poderia almejar na vida. Um dia, como o hotel era o único lugar na cidade a ter talheres de ouro suficientes para 300 convidados, o local acabou escolhido para receber a comitiva do imperador (e ditador) da Etiópia, Hailé Selassiê (1892-1975) – foi regente de seu país de 1916 a 1930 e reinou de 1930 a 1974. Como recompensa pelo atendimento exemplar, que chamou a atenção da comitiva do governante, Ditie foi escolhido para receber uma medalha com uma faixa azul do chanceler etíope. O gesto, no entanto, causou indignação em seu superior e a vida do garçom sofreu uma reviravolta. Alienado, Ditie se casou com a professora de ginástica alemã Lise, que já conhecia e a reencontrou durante a ocupação alemã no seu país. Por causa do envolvimento da mulher com os nazistas, o casal acabou rico depois da guerra. Mas ele não teria paz por causa disso.
Essa é apenas uma pequena parte da história do garçom Ditie, personagem marcante do escritor tcheco Bohumil Hrabal (1914-1997), protagonista de “Eu Servi ao Rei da Inglaterra”, um romance primoroso que se destaca pelo inusitado a cada página, em que o protagonista se envolve em uma série de aventuras e desventuras ao longo da vida. Como um “Forest Gump” ou o Sr . Jardim (“Muito Além do Jardim”) do cinema, sua ingenuidade parece atrair a sorte e, assim, a vida o leva para as mais inesperadas situações. Hrabal se revela nesse livro inesquecível um mestre em criar tipos humanos tão profundos que consegue lhes dar alma, a ponto de transcender das páginas do livro. Seu anti-herói irresistível prende o leitor com um relato “autobiográfico” comovente, capaz de convencê-lo a sofrer com ele num mundo de aparências e rígidas regras de conduta moral, em que todos os cidadãos são vigiados em tempo integral, inclusive por supostos amigos e vizinhos.
A estrutura de “Eu Servi ao Rei da Inglaterra” – dele, a Companhia das Letras também lançou depois o ótimo “Uma Solidão Ruidosa” – reforça a incomum capacidade dos tchecos de exercitar a imaginação para fazer obras de grande relevância literária, marcadas pela ênfase em personagens e situações que revelam o absurdo da vida. Em sua caminhada, seu alter-ego se depara com os mais diversos tipos humanos, que fazem do autor um talento inesgotável de imaginação. Como o professor que mergulhou tão fundo na leitura de um livro que não percebeu o que aconteceu à sua volta, numa mesa de restaurante: uma carnificina promovida por um grupo de ciganos. Ou a história do vendedor que, para impressionar um cliente, atirava moedas na rua como forma de demonstrar o quanto o restaurante perdia dinheiro porque não possuía uma de suas balanças.
Hrabal admitiu depois que sua fonte de inspiração foi, sem dúvida, a própria experiência que viveu como garçom num período de sua juventude. Antes de se formar em direito, o escritor trabalhou como escriturário, despachante de trem, carteiro, vendedor, operário de siderurgia, enfardador de papel usado, carpinteiro de teatro e extra em peças, além de garçom. Só publicou seu primeiro livro – a reunião de contos “A Pearl on the Bottom” – quando tinha 49 anos de idade, em 1963. No ano seguinte, saiu seu romance mais popular, “Dancing Lesson for the Advanced in Age”, nunca publicado no Brasil. Em seguida, saiu “Closely Watched Trains”, adaptado para o cinema por Jiri Menzel e vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 1966. O mesmo diretor filmou depois seu livro Cutting in Short” (1976).
Após o endurecimento do regime em seu país depois de 1968, Hrabal foi proibido de publicar em sua terra natal. Somente sete anos depois, voltou às livrarias tchecas, mas muito monitorado pela polícia. De 1976 a 1979, publicou sua primeira trilogia de memórias. Entre 1986 e 1987, saiu a segunda trilogia. Depois da Revolução de Veludo de 1989, vários de seus livros puderam ser publicados e reunidos em uma coleção que totalizou 19 volumes. Hrabal morreu em fevereiro de 1997, aos 83 anos, ao cair do quinto andar do hospital onde estava hospitalizado havia três meses para tratamento de problemas ortopédicos. Aparentemente, tentava alimentar alguns pombos que pousavam no parapeito, quando perdeu o equilíbrio. Não se descartou a hipótese de suicídio, cujos motivos aparecem ao longo dos seus livros. Por outro lado, morava no quinto andar de um prédio e falava para todos sobre seu temor em cair de uma altura daquelas.
Ao desaparecer da vida, Hrabal era consagrado como um dos grandes escritores tchecos do século XX. Somente no seu país, vendeu mais de três milhões de livros, um número bem expressivo. Seus textos foram traduzidos para 27 idiomas. Os romances e contos que criou falam sempre das relações entre pessoas, a maioria vinda das camadas sociais menos favorecidas. Ao mesmo tempo, fazem oposições filosóficas sobre a vida e a natureza, com ricas descrições dos personagens, cheias de lirismo. O escritor gostava de ambientar suas narrativas em bares e locais de trabalho. Era um otimista sempre, até o fim. Por mais que sofram, seus personagens tão peculiares nunca perdem a alegria de viver. Consagrado pela crítica internacional, Bohumil Hrabal se impôs como autor original, que diverte mesmo ao tratar das mazelas da vida.
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