[41 de 100] O grande romance dos quadrinhos, segundo Michael Chabon

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Corria o ano de 1939, quando o adolescente tcheco Josef Kavalier desembarcou como refugiado na cidade de Nova York. Ele foi o único membro da sua família que conseguiu fugir após a dominação de seu país pelos nazistas. Sem rumo, foi morar com o primo nova-iorquino Sammy Klayman, de 17 anos, com quem passou a dividir o interesse por desenho, numa época em que construir figuras sobre papel e compor histórias haviam se tornado as fontes de sobrevivência principalmente para jovens, na maior recessão econômica da história americana. Era tempo das revistas em quadrinhos, a coqueluche editorial que nasceu no ano anterior – até então, não havia gibis, as histórias saiam apenas nos jornais. Clay convenceu Joseph a criar com ele o super-herói Escapista, cuja identidade secreta era Tom Mayflower, o valente combatente do crime e protetor dos oprimidos, que contava com a ajuda de Luna Moth, uma linda garota inspirada numa artista local chamada Rosa Luxemburgo – que despertou o interesse e a homenagem dos dois cartunistas.

Qualquer semelhança entre a história da dupla e a dos criadores do Super-Homem, Joe Shuster (1914-1992) e Jerry Siegel (1914-1996), não é mera coincidência. O personagem se tornou um sucesso de vendas, à altura do concorrente Super-Homem, por causa de uma imposição ousada dos autores junto aos editores: colocar como vilão da série ninguém menos que Adolfo Hitler, muito antes do presidente americano Franklin Delano Roosevelt declarar guerra aos países do Eixo – que aconteceria em dezembro de 1941. O nome do personagem acabou funcionando como um código pessoal para Kavalier, que fez do super-ser seu alterego no mundo solitário, individualista e desesperador que encontrou na América, sem entender direito o idioma, longe de seu país de origem e incapaz de ajudá-lo a resgatar sua família na Europa. Enquanto o astuto Clay se defrontava com sua recém-descoberta homossexualidade, Kavalier passou a desenhar como um obstinado que projetava nos quadrinhos sua frustração, enquanto se tornava um militante contra o nazismo pelos quadrinhos.

Os dois primos também eram fãs do ilusionista judeu Harry Houdini (1874-1926) e compartilham diversas conexões com o mágico – Kavalier estudou a arte do escapismo, que o ajudou a fugir da Europa, enquanto Klayman era filho do artista Molécula Maravilha, o homem-forte de um teatro de vaudeville. Este conseguiu para Kavalier um trabalho como ilustrador em uma empresa de produtos de novidades que, devido ao recente sucesso do Super-Homem, tentava entrar no negócio das histórias em quadrinhos. Depois de mudar seu nome para Sam Clay, Klayman começou a escrever histórias de aventuras. Os dois primos, então, recrutaram diversos adolescentes do Brooklyn para produzir a revista “Amazing Midget Radio Comics”. A publicação apresentava seu personagem, o Escapista, como um super-herói antifascista que combinava as habilidades de (entre outros) Houdini, Batman, O Fantasma e O Pimpinela Escarlate. O Escapista se tornou muito popular, mas, como de fato ocorreu a muitos na época, os escritores e os artistas receberam quase nada em dinheiro pelo sucesso da publicação. Kavalier e Clay demoraram a notar que estavam sendo explorados. Além do entusiasmo de criar, viviam seus problemas particulares. Kavalier tentava salvar sua família e se apaixonou por uma garota boêmia que se tornou sua inspiração artística, enquanto Clay investia num secreto caso homossexual.

Esse é apenas o início de um romance visceral da década de 1990, um marco no gênero “pop”, deflagrado por nomes como Nick Horby (“Alta Fidelidade”) e Roddy Doyle (“Uma Estrela Chamada Henry”), entre outros. “As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay”, de Michael Chabon, publicado em 2000 – e, dois anos depois, no Brasil, pela Record –, venceu o mais importante prêmio literário norte-americano, o Pulitzer, em 2001, na categoria ficção, ao tratar de um tema menor, desprezado por quem estuda comunicação ou escreve sobre artes em geral – as histórias em quadrinhos. Quisessem ou não os críticos, ele deu dignidade aos gibis por serem uma instituição cultural americana, um fato relevante em sua cultura. Não é exagero afirmar, por exemplo, que Super-Homem, Homem-Aranha, Hulk e outros formam uma das mais importantes mitologias da contemporaneidade, a única em seu país de origem. O escritor mostra que o ideal do herói americano invencível, muito antes do cinema, tem sua origem nos quadrinhos.

O impacto criado pelo aparecimento do primeiro super-herói, o Super-Homem, em 1938, sem dúvida transformaria a cultura de massa americana no médio prazo. O Homem de Aço, indestrutível, com as cores da bandeira dos EUA em seu uniforme, teve uma importância histórica abrangente que vai além do universo dos fãs e colecionadores de gibis. Graças ao personagem, a indústria do entretenimento ganhou um novo impulso e seu papel de transformação no comportamento social e dos indivíduos foi importante. Com o super-herói, despontou um novo produto de massa que surgia na América: as revistas em quadrinhos. O Super-Homem ajudou os americanos a superarem a depressão econômica e influenciou o aparecimento de vários seres que acabaram por ter função determinante como propaganda durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Quadrinhos, então, eram lidos não por crianças, mas por um número respeitável de adultos. Enquanto Capitão América, Tocha Humana e Namor, entre outros, derrotavam os nazistas, as aventuras desses personagens fantasiaram outro país, interna e externamente. Em casa, trabalharam o inconsciente coletivo e o prepararam para a guerra. Fora, espalharam o ideal de democracia e liberdade dos americanos. Sem eles, não haveria Rambo, Bradock e outros heróis americanos do cinema criados durante a guerra fria – embate entre americanos e soviéticos em defesa de suas ideologias polícias, o capitalismo e o comunismo. Chabon fala desse período rico e transitório da história cultural dos EUA, quando os meios de comunicação mexiam com o comportamento das pessoas como nunca se vira antes. O romance recorre a um personagem fictício para descrever a difusão dos meios de comunicação de massa, no momento em que suas potencialidades eram testadas ao longo de uma guerra de proporções intercontinentais.

Se havia o cinema, o rádio e as histórias em quadrinhos, até onde esses veículos poderiam ajudar um país a vencer uma guerra de grandes proporções? Se Hitler tinha uma máquina de manipulação aparentemente mais eficiente, os americanos responderam com os meios que pareciam apenas divertir, mas que se revelaram mais eficientes quanto a mobilizar a opinião pública. O escritor romanceia o nascimento e os bastidores da indústria dos comics a partir de uma rigorosa pesquisa histórica e promove uma refinada análise desse fenômeno. Com humor e personagens bem construídos, ele conta a fulgás ascensão dos dois primos como autores de quadrinhos. A celebração ao autor pela crítica por sua prosa elegante, precisa e forte senso de humor que já se vira em “Garotos Incríveis” se justifica nesse romance. Em quase toda a narrativa, o escritor abusa do recurso de longos períodos intercalados entre os diálogos dos personagens que tornam a trama, às vezes, arrastada. Mas ele sabe contar bem uma história, que não fala só de quadrinhos.

Chabon faz um longo e apurado painel de Nova York das décadas de 1930 e 1940. Com ele, anda-se por uma grande cidade que vive a angústia da guerra e o esforço em tirar o país da recessão. Ele descreve a metrópole com a sensibilidade que imprimiu a seus cativantes personagens – a maioria imigrantes que viravam americanos e tipos combalidos pela crise mas que conseguiram dar uma guinada numa nação que se autodenominava terra das oportunidades. A maior cidade americana, que se orgulhava de seus cada vez mais monumentais arranha-céus, vivia da fantasia de seres imaginários, vindos dos quadrinhos, voadores, com capas nas costas e capazes de derrotar os mais poderosos inimigos perambulavam pelas ruas, becos escuros e topos dos edifícios. Logo essas figuras atravessaram o Atlântico para lutar no fronte. Enquanto isso, a Mulher Maravilha desbancava a sociedade machista e antecipava em pelo menos duas décadas a emancipação que resultaria do movimento feminista. Certamente, muitas das líderes das mulheres leram a super-heroína na infância ou adolescência.

Como um bom judeu, Michael Chabon ressalta o papel importante de escritores e artistas de origem judaica não apenas no campo dos quadrinhos, como também na cultura popular de ficção e fantasia norte-americana – em parte, muitos ilustradores judeus acabaram se envolvendo com gibis por terem trabalho negado em campos mais “respeitáveis”. Desse enfoque, ele mostra sua versatilidade ao abrir um caminho diferenciado na literatura americana, distante do modismo atual de interagir suas criações, história e cultura pop moderna. Leitor de gibis desde criancinha, fez uma celebração para os fãs do gênero, um painel de um povo em mutação e, acima de tudo, um grande romance, com uma história que mergulha na alma de um país e de sua gente.


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