[42 de 100] O folhetim do imperador, segundo Victor Leal

42No Rio de Janeiro da última década do século XIX, um mistério despertou a atenção dos intelectuais – escritores e jornalistas, principalmente – e dos leitores que tinham hábito de ler a seção de romances em formato de folhetim do jornal carioca “Gazeta de Notícias”. Quem seria o tal Victor Leal, responsável por alguns sucessos novelescos daquele jornal? O autor, ao contrário de seus colegas de redação ou das letras, nunca foi visto em rodas de escritores ou mesmo em teatros, redações, “boudoirs”, cervejarias ou batotas – para se usar um termo da época, que queria dizer jogos de trapaça. Seria ele o pseudônimo de alguém famoso, prática tão comum na imprensa da época? Talvez não, uma vez que a “Gazeta” estampava regularmente seu retrato, feito por certo desenhista chamado apenas de Hastoy. Leal, como descreveu o poeta e jornalista Olavo Bilac (1865-1918), ele aparecia no jornal onde trabalhava como um “mocinho esbelto, de bigodinhos encalamistrados, chapéu desabado ao estilo (retratista flamenco Antoon) Van Dyck (1599-1641), cabelereira à 1830 e um grande ar de supremo desaforo e de insolência na face e no modo de vestir”. 

O mistério sobre a identidade de Victor Leal durou quatro anos, entre muitas especulações e desconfianças. Nesse período, o escritor publicou três folhetins de sucesso: “O Esqueleto”, “Paula Matos ou o Monte de Socorro” e “A Mortalha de Alzira”. Sua identidade, finalmente, veio a público no ano de 1894, quando saiu a primeira edição em livro de “O Esqueleto”, com o subtítulo “O Mistério da Casa de Bragança”. Aluísio Azevedo, na apresentação do volume, explicou que Leal era o nome usado, na verdade, por ele e mais três amigos, Olavo Bilac, Pardal Mallet (1864-1894) e Coelho Neto (1864-1934). Ora eles assinavam em dupla ora em trio ou em quarteto. No caso de “O Esqueleto”, o texto foi criado praticamente a quatro mãos, por Bilac e Mallet. Mesmo com a revelação feita pelo autor de “O Cortiço” e “O Mulato”, uma série de reedições – a última delas, de 1954, pela Livraria Martins – que, inexplicavelmente, identificou Azevedo como seu único autor, uma vez que o volume que serviu como base para reprodução trazia essa informação. O mesmo aconteceu com “A Mortalha de Alzira”, reeditado pelo mesmo selo. 

Mais de um século depois de sua estreia em livro, a autoria de “O Esqueleto” foi finalmente reestabelecida, em volume publicado em julho de 2000, pela editora carioca Casa da Palavra – com apêndices do crítico literário Brito Brocca (1903-1961), de Bilac e de Azevedo, além de reproduções de ilustrações que acompanharam a versão em jornal, feitas pelo italiano Ângelo Agostini (1843-1910), fundador e editor da revista “Vida Fluminense” (1868). Tratava-se, portanto, de uma edição apenas para retificar uma curiosa injustiça autoral? Nada disso. Desprezada por muitos como uma obra oportunista e de texto ruim, apenas para ganhar dinheiro, e admirado por outros como um exercício literário ou um romance de caráter estritamente subversivo, “O Esqueleto” é folhetim puro, na melhor tradição francesa, com tudo de bom que o gênero costuma reunir para divertir seus leitores, segundo os moldes das histórias de aventura de autores clássicos como Alexandre Dumas, pai (1802-1870) – o gênero surgiu na França, no início do século XIX, junto ao nascimento da imprensa, e pode ser definido como uma narrativa literária, seriada dentro dos gêneros prosa de ficção e romance, publicada de forma parcial e sequenciada em jornais e revistas. 

Assim como as matrizes originais, esse pequeno livro apresenta narrativa ágil, profusão de eventos que lhe dá ação e movimento o tempo todo, e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção do leitor de um capítulo para o outro. Os jovens e impetuosos Bilac e Mallet escreveram, enfim, um romance de costumes falsamente histórico, de leitura envolvente e de importância histórica relevante, por representar um subgênero satírico muito comum na época, raramente reeditado. A trama está centrada na intrigante e misteriosa figura do italiano Ângelo Pallingrini – homenagem a Agostini? –, cuja sinistra gargalhada lhe rendeu o apelido de Satanás. A história se passa nos dias que antecederam a proclamação da Independência do Brasil, entre os anos de 1821 e 1822. Depois de percorrer boa parte do mundo em fantásticas e perigosas aventuras, o solitário homem se torna confidente constante de Dom Pedro I (1798-1834). Mais que isso, transforma-se quase na segunda pessoa do Estado brasileiro, muito ouvida e atendida pelo imperador. 

Satanás é uma figura caricatural, porém metodicamente elaborada e estruturada como personagem. Temido por causa de seu gênio intimidador, impõe respeito pela habilidade com que alimenta as fantasias boêmias e sexuais do imperador – exatamente como Dom Pedro I ficou personalizado no imaginário popular. De mestre de armas, o assecla se transforma em alcoviteiro para atender ao apetite libidinoso do jovem príncipe, “ávido de amores e façanhas”. Assim, “depois de guiar-lhe os pulsos, passou a guiar-lhe o coração”. Até o dia em que o imperador se apaixona por ninguém menos que a filha de… Satanás! Nenhum dos dois amigos, porém, sabe disso por um bom tempo. Depois da revelação, ambos passam a viver, intimamente, a culpa da desgraça resultante dessa paixão, que cada um atribui a si próprio a responsabilidade. Enquanto isso, Dom Pedro I, então, divide-se entre as responsabilidades políticas de “defensor perpétuo do Brasil” e a rotina de suas paixões incontidas. 

O carioca Olavo Bilac talvez tenha sido o poeta mais lido nas duas primeiras décadas do século XX. Abolicionista e republicano, ele defendeu o serviço militar obrigatório como forma de combater o analfabetismo no país, a partir da criação de cursos de alfabetização nos quartéis. Militante ativo da vida política carioca, acabou perseguido, ao lado do amigo Pardal Mallet, por ter feito campanha contra o governo de Floriano Peixoto (1839-1895), o “Marechal de Ferro”, entre novembro de 1891 e novembro de 1894. Autor de seis livros, o jornalista e escritor gaúcho João Carlos de Medeiros Pardal Mallet (1864-1894) morreu prematuramente, com apenas 30 anos. Foi tão respeitado em sua época que se tornou patrono da cadeira número 30 da Academia Brasileira de Letras. Veio de uma família de militares de alta patente – filho do general João Nepomuceno de Medeiros Mallet e neto do marechal Emílio Mallet, patrono da artilharia do Exército, ambos participantes da Guerra do Paraguai. Precoce, aprendeu a ler sozinho e antes de completar dez anos, já ensaiava alguns escritos. 

Bilac e Mallet escreveram um romance que soa mais como uma brincadeira satírica e provocadora. Tudo com muita picardia, intensa vida sexual dos protagonistas e graça. O leitor pode estranhar, a princípio, a linguagem supostamente arcaica e excessivamente lusitana, mas a agilidade da narrativa, bem construída, torna a história deliciosamente envolvente. Despretensiosa e irreverente, a trama resistiu ao tempo e permite uma volta ao fascinante mundo das trevas da provinciana Rio de Janeiro dos 1800. Clichês à parte, “O Esqueleto” é um livro que diverte com certa originalidade e muita transgressão.


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