[46 de 100] Um exemplo do imponderável, segundo Ernest Hemingway

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 A tocante história de “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway (1899-1961), é um acontecimento na mais alta literatura de todas as épocas. Por uma série de motivos. Primeiro, porque permite múltiplas leituras dos sentidos buscados ou direcionados pelo autor. Segundo, pela densidade alcançada por ele em um texto tão curto. Depois, pelas reações, sensações e impactos que provoca nos leitores. É um livro atordoante. Hipnótico. Poderia ser considerado, por exemplo, como uma obra de auto-ajuda, dentro dos clichês que definem o gênero – afinal, é uma história empolgante de superação. Assim como acontece com o excelente “O Relato de Um Náufrago”, do colombiano Gabriel Garcia Marquez, também ambientado em alto mar, mas baseado numa história real, a obra retrata a luta do homem pela vida contra a faceta mais selvagem e implacável na natureza. Por outro lado, realça o imprevisível poder de sobrevivência do homem. No caso de Hemingway, porém, a peculiaridade está em tratar a velhice como um momento de nobreza em que a decadência física perde força para outras virtudes como força de vontade, perseverança, teimosia e vontade de vencer os próprios limites para se manter vivo. 

Escrito em Cuba, em 1951, e publicado no ano seguinte, “O Velho e o Mar” logo se transformou em uma das obras mais famosas de Hemingway e que não passou em branco pela crítica – na verdade, dividiu opiniões entre o entusiasmo e a desconfiança. Título mais vendido do autor no Brasil, o livro foi agraciado com o badalado Prêmio Pulitzer, o mais importante da literatura e do jornalismo nos Estados Unidos, em 1954. Na trama, um velho pescador em idade bem avançada, chamado apenas de Santiago, decide lutar contra um gigante tubarão em alto mar, sem se importar com os perigos da Corrente do Golfo, que pesa contra ele. Antes disso, porém, alguns fatos relevantes acontecem que o colocam nessa situação. Apesar de muito experiente, encontra-se numa maré de azar. Depois de décadas na profissão, havia 84 dias que ele não apanhava um único peixe. Por isso, diziam-se entre os colegas de profissão se tratar de um salão, ou seja, um azarento da pior espécie de quem se deveria manter distância. Mas ele possui coragem, acredita em si mesmo, e parte sozinho para pescaria o mais distante possível, munido da certeza de que, desta vez, será bem-sucedido no seu trabalho, sem se importar muito com a sua fragilidade física. 

Santiago possui um jovem amigo, Manolin, que o incentiva a pescar e a seguir em frente. A princípio, o ancião parece próximo do êxito desejado, ao fisgar um imenso peixe-espada, que oferece muita resistência. Tanto que arrasta a embarcação por um bom tempo, cada vez mais para mar afora. Após o cansativo embate, mata o animal e o puxa para dentro da sua pequena canoa. A caça valiosa tem aproximadamente cinco metros de comprimento e pesa pelo menos 700 quilos – o que lhe dá a certeza de tempos de fartura. Antes, o peixe Santiago sofre com o sol escaldante, capaz de cegar um homem. Tanto esforço faz com que se abram grandes feridas em suas mãos. “Pessoas da minha idade nunca deviam estar sozinhas”, pensou ele. “Mas é inevitável. Tenho de comer aquele atum antes que comece a luta, para estar forte. Lembre-se de que, mesmo que não tenha fome, você precisa comer de manhazinha. Lembre-se”, repetiu-o em pensamento. ‘A sua escolha inicial fora se esconder nas águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora ir procurá-lo onde alguém jamais ousara ir’. Sim, onde alguém jamais ousara ir. E agora estavam ligados um ao outro e assim se encontravam desde o meio dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro.” 

O pescador não podia imaginar que seu drama estava apenas começando. O confronto e a vitória contra o peixe comprometem sua embarcação, enquanto o cansaço mina suas forças. Desprovido de energia, no primeiro momento, sente perder o desejo de continuar a viver. Mas ele recupera o vigor e o desafio que a morte lhe impõe e se vê quase uma ressurreição. Soma-se a isso a honra, a decisão de mostrar que ainda pulsa vida em suas veias e que não está acabado para sua comunidade. Com o peixe amarrado, ele tenta voltar à costa, quando tem um desafio ainda maior: passa a sofrer constantes ataques de tubarões, atraídos pelo peixe morto. Santiago, então, recorre a todas as possibilidades que lhe vêm à mente. Depois de fazer suas preces, encosta-se no banco da canoa, ao lado do peixe, e começa, mecanicamente, a mover todos os dedos da mão esquerda para tentar recuperar a agilidade habitual. E assim a história prossegue, completamente imprevisível, com o seu realismo tão impressionante. “Imagine o que seria se um homem tivesse de tentar matar a lua todos os dias”, pensou o velho. “A lua corre depressa. Mas imagine só se um homem tivesse de matar o sol. Nascemos com sorte”. 

Assim que o romance chegou às livrarias, o famoso crítico literário Cyril Connoly recomendou com entusiasmo: “Leia o livro ‘O Velho e o Mar’ imediatamente. Após alguns dias, leia-o novamente e irá verificar que nenhuma página desta bela obra-prima poderia ter sido escrita melhor ou de forma diferente”. Nem todo mundo concordou. Mas o Pulitzer e a crescente revisão de especialistas quanto a seu valor no decorrer dos anos – além da inesquecível versão para o cinema, em 1958, com Spencer Tracy (1900-1967) – fizeram com que a obra permanecesse como uma referência entre os melhores livros de Hemingway. Mais que isso, reafirmou a importância do autor em tempo de qualificá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura, que ganhou em 1954. Nas reinterpretações que foram feitas, passou-se a afirmar que se trata da história de um homem que convive com a solidão, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e a inabalável confiança na vida. Como diz a edição brasileira, “tem-se um enredo tenso que prende o leitor na ponta da linha, Hemingway escreveu uma das mais belas obras da literatura contemporânea. Uma história dotada de profunda mensagem de fé no homem e em sua capacidade de superar as limitações a que a vida o submete.” 

Do ponto de vista técnico, da construção e da narrativa, o pequeno livro de Hemingway não se enquadra de forma alguma em um estilo convencional; as respostas não estão exatamente no enredo em si, mas sim nas entrelinhas da história, feita quase como uma parábola ou uma fábula, já que os peixes praticamente são personagens de relevância. Como lembra a crítica Ana Lúcia Santana, é preciso, porém, ser paciente durante a leitura – ou releitura – para decifrar as intenções do autor. “Não basta saber se o pescador vencerá o confronto com a morte e arrecadará o peixe que lhe resgatará a fama e os recursos financeiros de que ele carece. Tudo se desenrola no estilo típico de Hemingway, realista e conciso. E a trama apenas vale como um pretexto para o leitor meditar sobre a iminência da solidão.” Em alto mar, Santiago está a sós com as forças da natureza e com a pesca que o leva cada vez mais ao âmago do oceano. “Assim como o homem, em sua condição humana de caminhante solitário, tem que enfrentar este estado existencial, o pescador tem que lutar para sobreviver, assediado pelo calor, e lesado em suas mãos no combate com o animal.” 

Para Hemingway, ao que parece, a história de “O Velho e o Mar” dependeu essencialmente do contexto natural e social no qual foi ambientado na época em que o escreveu. A pobreza do pescador e as necessidades básicas que ele não consegue suprir para sobreviver, num universo de pobreza, quase miserável, são indicativos disso. E foi assim que escreveu um romance em que uma história aparente simplória se torna grandiosa pela força de sua narrativa essencialmente literária e poética, o que resulta em um livro absolutamente raro. 


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