O pai do bombeiro Jim Nashe, de Boston, morrera um mês antes de sua mulher Thérèse colocar um ponto final no casamento dos dois. Mas os advogados só o localizaram seis meses depois, quando sua vida parecia arruinada de modo irreversível. Queriam lhe entregar 200 mil dólares de herança, o que conseguiram fazer. Sem lar, abandonara tudo e passara a gastar suas economias percorrendo de carro os Estados Unidos de leste a oeste, de norte a sul, sem destino certo. Nem mesmo a fortuna recebida o fez mudar de ideia. Se tivesse vislumbrado o dinheiro, talvez o rapaz de 32 anos de idade convencesse a esposa a ficar e não teria entregado a filha de dois anos, Juliette, para a irmã Donna tomar conta. De qualquer modo, seguiu em frente. Em treze meses na estrada, nada fez além de dirigir alucinadamente, na esperança de seus recursos acabarem.
Quando compreendeu o que acontecia, Nashe não quis mais parar. Dirigia rumo ao desconhecido, em uma vida errante e solitária. Assim, experimentava uma ruptura completa com seu passado. Quando pôs o pé na estrada, acreditou que em dois meses haveria de se cansar daquela vida, calculou. Então, pararia para pensar no que fazer em seguida. No entanto, transcorridos dois meses, ainda queria prosseguir. “Pouco a pouco, fora se apaixonando por aquela vida nova livre, irresponsável e, uma vez que assim fosse, já não tinha mais motivo para parar.” Na rotina que estabeleceu, instalava-se em um motel qualquer, jantava, voltava ao quarto e ficava lendo livros e revistas por até três horas. Antes de pegar no sono, abria o mapa e escolhia outra destinação. Uma das poucas vezes em que exagerou em seus gastos, entrou numa jogatina na cidade de Las Vegas, da qual milagrosamente saiu sem perder nem ganhar.
Nas primeiras semanas, alugara uma caixa postal no Correio de Northfield e, no início de cada mês, passava pela cidade para recolher as faturas do cartão de crédito e ficar alguns dias com a filha. “Esse era o único aspecto de sua vida que não mudava, o único compromisso que assumia.” Entre paradas para consertos e manutenção do veículo e encontros amorosos passageiros, o viajante reencontrou uma antiga paquera, Fiona, por quem se apaixonou. Mesmo assim, não interrompeu a jornada – voltava para vê-la de vez em quando. Enquanto isso, com o tempo, sentia cada vez mais em paz consigo próprio. “O único senão era de que aquilo haveria de ter um fim; ele não poderia continuar levando para sempre aquela vida”, diz o narrador. Foi nessa fase da viagem que o teto começou a desabar sobre sua cabeça, com uma série de questões que passaram a atormentá-lo.
E aqui surgiu a maior incoerência. “O dinheiro era responsável por sua liberdade, mas, a cada vez que ele usava para comprar uma porção dessa liberdade, privava-se de uma porção igual. O dinheiro permitia-lhe prosseguir mas também lhe trazia perdas, conduzindo-o impiedosamente de volta ao ponto de partida. No fundo, narra Auster, seu personagem pouca coisa sentiu além de alegria. “O dinheiro representava para ele algo de consequências tão extraordinárias, tão monumentais, que subjugava todo o resto.” E a história prossegue, tensa e estranhamente obsessiva, de um homem que tenta mudar um universo onde tudo acontece à revelia do indivíduo.
Suas economias estavam no fim quando, em uma bela manhã de final de verão, parou o carro na estrada para dar carona a um rapaz que ele soube depois se chamar Jack Pozzi, cujo apelido era Jackpot (em inglês, total de apostas em um jogo), que se identificou como jogador de cartas que acabara de se dar mal numa jogatina, a ponto de levar uma tremenda surra. Tanto que seu rosto estava deformado, inchado, cheio de hematomas e suas roupas rasgadas. O rapaz é, supostamente, um brilhante jogador que convence Nashe a apostar os últimos 14 mil dólares que traz no porta-luvas de seu carro em uma partida contra dois milionários excêntricos, que poderia dar aos dois uma vida sem preocupações financeiras. Acordo feito, os dois se vêm amarrados a uma promessa que pode custar caro demais, inclusive seu direito de andar livremente.
Esse é apenas o começo de “Música do Acaso”, romance do escritor americano Paul Auster, lançado em 1990. Lido duas décadas depois, o livro não apenas melhorou ainda mais como também permite observar como a cabeça de um dos melhores e mais originais autores da América observava seu tempo, sua época e seu país. É um texto mais denso e profundo do que parece e o leitor percebe isso à medida que a trama se desenrola, no discurso carregado de ironias e provocações sutis dos personagens. Auster explora em sua obra um velho clichê da cultura americana, comum a grandes países de extensões continentais: a realização de uma longa viagem por estrada como forma de autodescoberta ou da busca por algum sentido para a existência, a própria vida. Ele o faz, entretanto, de modo peculiar, interessante e inteligente. Tanto que consegue fugir à mesmice do subgênero literário. Sem dúvida, consolidou-o como grande escritor.
Sobre o romance e seu desesperado protagonista, já se disse que Auster explora o lado mais negro da natureza humana e alguns dos temas mais caros ao autor estão presentes nessa obra emblemática em sua carreira. Questões perturbadoras sobre lealdade e até a inexplicável vontade de matar também aparecem. O livro tem, entre outros méritos, ensinar que o destino é um lugar estranho, além de trazer tom melancólico, cheio de suspense, numa história imprevisível. Seria ainda a metáfora sobre a fragilidade da identidade e a arbitrariedade das regras que regulam a vida de todos. É tudo isso e mais.
Ao fazer uma história essencialmente sobre os variados e variantes conceitos de liberdade e o desejo de fugir de uma existência que parece inevitável e medíocre, o escritor estabelece um mundo um tanto quanto bizarro onde um simples jogo de cartas pode mudar a vida dos seus participantes. Auster supervaloriza, aparentemente, a noção de liberdade, algo tão caro aos princípios do povo americano. Pretende, na verdade, questioná-lo e mostrar certo desencanto por meio do seu personagem. Como se vê no diálogo entre Nashe e Fiona. Ele: “Não se preocupe. Eu volto. Agora sou um homem livre e posso fazer o que bem entender.” Ela: “Estamos na América, Nashe. A terra da maldita liberdade, lembra-se? Podemos fazer tudo que quisermos.” E acrescentou que era livre inclusive para se fazer de tola.
De modo sutil, Auster fala de uma América que havia perdido o encanto e a magia, depois das utopias da década de 1960. Como se a nação tivesse acordado do sonho americano e visto que a realidade era bem mais amarga, embora também ilusória. “A essência de tudo era a velocidade, a alegria de estar no carro e percorrer rapidamente as distâncias. Isso se transforma num bem acima de qualquer outro, numa fome a ser saciada a todo custo. Nada ao seu redor permanecia além de um momento e, como a um momento se seguisse outro, era como se ele apenas continuasse a existir.” Nesse contexto, o protagonista se via como um ponto fixo no remoinho de mudanças, um corpo equilibrado em mobilidade absoluta em um mundo que passava e desaparecia velozmente.
A visão limitada e egoísta de Nashe fez com que ele, como muitos compatriotas, visse os valores do estilo de vida americano de modo distorcido. “O carro tornara-se um santuário de invulnerabilidade, um refúgio onde mais nada o podia atingir. Quando estava à direção, nenhum problema lhe pesava, sentia-se desembaraçado de todos os vínculos com a vida de antes. Por certo lhe ocorriam lembranças, mas estas pareciam não mais provocar a velha angústia.” Em sua epopeia insana, nesse exercício radical da experiência americana de democracia, o anti-herói de Auster escolhia sempre estradas sem tráfego para correr demais, rumo a lugar nenhum. Mesmo assim, viu muitos acidentes fatais ao longo de meses em que passou na estrada, e uma ou duas vezes ele próprio escapou por um triz de se acidentar. “No entanto, via até com bons olhos tais ameaças, pois acrescentavam um elemento de risco ao que estava fazendo, e era exatamente o que procurava, mais do que qualquer outra coisa: sentir que tinha a própria vida nas mãos.” Não tinha.
Paul Auster talvez tenha sido um dos primeiros autores de sua geração a dar um tratamento especial à música, quase como uma trilha sonora do romance – onda que se transformaria em modismo na década de 1990. “Talvez a música contribuísse para isso, as intermináveis fitas de Bach, Mozart e Verdi. Era como se, de algum modo, os sons emanassem dele e impregnassem a paisagem, transformando o mundo visível num reflexo de seus próprios pensamentos. Três ou quatro meses depois, bastava entrar no carro para sentir se desprender do corpo. Assim que pisava no acelerador e começava a dirigir, era como se a música o transportasse para um mundo sem gravidade.”
“Música do Acaso” é um romance ousado, ambicioso e nunca pretensioso, na linha dos clássicos com histórias que cruzam os Estados Unidos e se tornam marco de uma época, como John dos Passos (Paralelo 42) e Jack Kerouac (On the Road), sem a intenção aqui de fazer comparações entre esses autores. Tanto tempo longe das livrarias, a narrativa envelheceu bem. Como costuma acontecer com uma elegante mulher ou um bom vinho. Um livro que deve ser (re) descoberto.
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